A leitura do final de ano foi o livro Boy’s Love – sem preconceito, sem limites. O livro é uma coletânea de contos brasileiros do gênero BL organizado pela nossa chefe Tanko, publicado pela Editora Draco e que contou com a participação dos autores brasileiros Dana Guedes, Claudia Dugim, Márcia Souza, Priscilla Matsumoto, Karen Alvares, Vikram Raj, Blanxe, a própria Tanko Chan e o lusitano Nuno Almeida.
Não vou nem entrar no mérito de escrita e aquelas importâncias de narrativa, volume e velocidade de texto, porque eu não tenho conhecimento técnico para isso. Na verdade, até tenho um pouco, mas não é uma resenha técnica o meu objetivo aqui.
Depois de ler o livro e refletir por um tempo, achei a coletânea muito boa como um todo. Cada conto apresentado tem uma personalidade própria, um jeito de escrita particular e enredos muito originais. Gostei muito do pano de fundo das histórias e principalmente que todas elas abordaram em menor ou maior grau a questão do preconceito e da limitação (ou castração, como gosto de falar) do amor. Em especial, gostei muito da abordagem de Claudia Dugim relacionada a esta questão e principalmente a transfobia.
No conto Lolipop, Claudia aborda uma sociedade sci-fi em que a cidade aparentemente linda e perfeita é levada com punhos de ferro sob a fiscalização de robôs. Cada cidadão recebe um código em seu braço que indica o que ele/ela é: homossexual ou heterossexual, masculino ou feminino, comprometido ou livre de compromissos, passivo ou ativo. Os cidadãos também recebem uma “orientação vocacional” que determina o que eles devem fazer de suas vidas (trabalharem em uma loja de produtos eróticos ou fazer nada, por exemplo). Se você não seguir o que a tatuagem no seu braço diz e for pego pelos robôs ou pelos vigilantes (moradores da cidade que ajudam a “organização” a fiscalizar os demais moradores), você pode desde receber uma multa a ser mandado a um reformatório. E é assim que um rapaz que é enxergado como um transgressor por não se encaixar em seu corpo masculino encontra um vigilante heterossexual insatisfeito com sua própria vida.
Ainda na linha do sci-fi nós temos Blanxe com Perfect Mistake. Sou muito suspeita para falar da Blanxe, pois acompanho o trabalho dela há anos, já fui beta dela lá em 2005 e sempre tive e terei muito carinho por ela como escritora e amiga. Adoro tudo que leio dela e sempre me surpreendo muito com o fluxo e o clímax das narrativas dela. Não foi diferente com Perfect Mistake, onde temos um piloto em busca da redenção de seus erros para com um grande amor e amigo, e um cientista, aparentemente louco, que pode ajudá-lo nessa empreitada. Mesmo em poucas páginas, a história tem adrenalina e não fica apenas em contexto romântico, levando a narrativa mais para o lado da ação. Mas é claro, tem lemon, daqueles perfeitos da Blanxe, e um desfecho na medida certa.
Falando ainda do preconceito com um toque de violência real, próximo a todos nós, vem o conto O Sentimento de Karen Alvares. A história se passa nos preâmbulos da relação entre dois adolescentes imersos em um mar de preconceito oriundo do pai de um deles e dos amigos da escola. Como todo jovem, perdido e sem saber discernir certo e errado, ambos acabam caindo nas armadilhas do mundo que vire e mexe nos castra na demonstração dos nossos sentimentos, por mais puro e bonito que sejam. O resultado acaba sendo desastroso e marcante.
Na mesma pedida de Karen temos ainda No Amor e Na Guerra de Nuno Almeida. Nessa história, a guerra retira um fazendeiro de sua rotina pacata e o joga na realidade da guerra sem qualquer preparação. Lá, ele encontra amigos e inimigos e também uma pessoa muito especial. A relação dos dois é um ponto de virada na vida de ambos. Como é um conto, achei que ia ser muito complicado falar de guerra nele, mas até que não. Nuno conseguiu fazer isso muito bem, mostrando as batalhas com pano de fundo, mas não entrando nelas de modo exacerbado. Agora, Nuno, eu ainda estou confusa com aquele final! Gostaria muito de saber se aquela cena na fazenda é só imaginação do fazendeiro, como algo que ele desejasse, ou se aquilo era real. Torço para que seja o segundo.
Boy’s Love 2, como chamamos carinhosamente, também traz bastante misticismo. Se essa é a sua praia, indico os contos: Daruma (Dana Guedes), O Colar de Scheherazade (Márcia Souza), O reflexo do dokkaebi (Priscilla Matsumoto), O Palácio dos Rakshasas (Vikram Raj e Maçã (Tanko Chan).
Daruma vem em uma roupagem parecida com Flor de Ameixeira de Dana Guedes, mas não na mesma temática. Em Daruma um estudante desesperado para passar no vestibular vê sua vida mudar totalmente após um acidente, quando tudo que ele terá para se apoiar é um presente dado pelo seu avô, um daruma. Em meio a adaptação das lendas japonesas e um pouco de aventura, Dana nos entrega uma história muito bonita que fala sobre superação e encarar os próprios medos.
Já O Colar de Scheherazade traz aquela antiga história do famoso As Mil e Uma Noites e uma lenda urbana à tona com uma roupagem muito interessante. Um investigador da polícia de São Paulo tem a missão de desvendar o misterioso assassinato de jovens rapazes no que parece ser um ritual satânico. Em meio a sua busca, ele e seu parceiro encontram um rapaz que certamente pode ajudá-lo, mas que é puro mistério para nosso investigador. Achei a narrativa desse conto interessantíssima, pois não é a estrutura normal dos flashbacks que a gente vê por aí. Fiquei confusa em determinados momentos, e tive que ter atenção, pois a história migrava de 1734 para o tempo atual da narrativa, passando pela infância do policial. Contudo, a passagem do tempo e a construção da trama são essenciais para entendermos melhor a história.
O reflexo do dokkaebi traz a história de um infeliz professor de português que encontra um rapaz coreano enquanto estava relaxando do trabalho com sua cerveja. Com elementos de magia e muita sensualidade, o enredo puxa o leitor para tentar entender o que é um dokkaebi e qual a relação com o rapaz coreano. Em meio a toda insatisfação de sua vida, o professor parece finalmente começar a alcançar um pouco a felicidade, mas há um preço a ser pagar por estar ao lado de um dokkaebi.
O conto que menos tenho propriedade para falar é O Palácio dos Rakshasas, porque eu sinceramente não entendo muito da mitologia hindu. Entretanto, eu gostei bastante. Os elementos religiosos estão ali, bem como as crenças e o romance, e tudo é um adorável pano de fundo para a história de um habilidoso escultor e a ira e ganância do rei dos demônios, Ravana. Depois de um ultimato, o escultor é preso pelo rei em seu calabouço e tudo parece perdido até que a ajuda de um músico se torna bem-vinda.
Em Maçã nós recebemos a possibilidade da concretização do amor. Apesar dos caminhos separarem dois amores, de alguma forma, a manipulação das linhas temporais faz com que um novo amor desabroche. É assim que um jovem, tendo perdido seu amor devido ao preconceito violento de sua cidade, encontra finalmente o conforto para a dor dessa perda e o novo amor nos braços de um nem tão desconhecido assim rapaz.
Vocês vão reparar que cada conto desse livro vem acompanhado de uma ilustração belíssima da Tanko Chan, assim como a arte da capa. Acho que a inserção de imagens nessa coletânea foi uma ótima ideia, porque enriquece a experiência do leitor principalmente no caso dos contos, que normalmente são um espaço restrito para a construção e elaboração das ideias que permeiam a história que os autores querem contar. Essa visualização a mais ajuda o leitor a entender melhor a história fazendo com que ele aproveite melhor os contos.
No todo, os contos são bons, bem escritos e bastante interessantes. Cada pano de fundo tem um elemento que distingue bem o outro e, claro, o romance e o lemon estão lá. A discussão da homofobia, da transfobia e da obstrução do direito de livre amor são muito fortes nesse livro. Em alguns contos, cheguei a me sentir inconformada, como no caso de O Sentimento. Uma discussão tão aberta sobre isso é bastante interessante e nem tão longe assim da nossa realidade. Em pensar que em 2015 ainda temos muitos que sofrem por não poder expressar o seu amor, seja ele qual for, e acabam por perder a vida ou serem mutilados para sempre devido a isso.
Teve apenas uma coisa que não gostei tanto no livro. Boy’s Love – sem preconceitos, sem limites me fez lembrar um pouco os yaois das décadas de 80 e 90. Muitas das histórias não têm “final feliz”. O que quero dizer é que não há a concretização do amor, a vitória do amor em detrimento de todo o preconceito. Isso ainda é a nossa realidade hoje e isso é muito triste. Confesso que esperava um livro com mais vitórias do amor, com um amor que se solidifica e se estende forte, não importando o preconceito que tenta derrubá-lo. Um amor que é abalado pelas palavras rude homofóbicas, mas que se levanta e se reconstrói todos os dias. Todos nós precisamos ler isso, porque todos os dias precisamos acreditar que é possível viver sem preconceitos, sem limites.
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