“Kinshi na Karada” é um livro escrito pela autora brasileira Josiane Veiga lançado em 1º de agosto de 2014, muito conhecida também por outros BLs como a saga Jishu – Rendição, Rendenção e Remissão – e outros. A autora está para lançar a continuação de Kinshi, “Jiyuu na Karada” no dia 6 de julho de 2015.
Antes de começar a resenha, quero declarar que não vou me concentrar em fatos históricos e/ou identidades oficiais dos personagens. O motivo é simples: quando peguei esse livro pensei “quero ler essa história e ver até onde ela vai me tomar e me emocionar”. Não entendo muito de História, confesso, mas poderia pesquisar se fosse muito “cri-cri”. Acredito que um pano de fundo é o que é: cenário, e como tal tem sua importância dentro da narrativa como foi montado. Todo bom autor, como Josiane o é, faz uma extensa pesquisa antes de começar seus textos e o que muitos(as) tietes não entendem é que é preciso um “quê” de maleabilidade para se fluir um enredo.
Nunca me esqueço do que Bernard Cornwell disse em “O Rei do Inverno”: “É impossível que Arthur e Merlin tenham existido na mesma época, não haveria como! Mas o que é uma história sobre Rei Arthur sem Merlin?”. Contexto sempre é importante, mas nunca deve ser mais importante do que o enredo e os personagens em si. Se mesmo assim sua curiosidade estiver comendo suas unhas, querido leitor, ao final do livro há uma seção de notas que traz explicações de termos, referências e também explica quem foram personalidades que aparecem no livro.
Quero ressaltar o trabalho primoroso de Daniela Owergoor nessa excelente capa para “Kinshi na Karada”. Confesso que a capa foi o que primeiro me atraiu no livro, pois os tons são lindos e ela retrata muito bem o cenário e contexto do livro, que mistura o caos da Segunda Guerra Mundial com a sensualidade e romance da Casa Ai. Note que não é possível saber quem está por trás do leque, quem é o Corpo Proibido. Seria um homem? Uma mulher? Parabéns à Daniela Owergoor pelo trabalho lindo e íntimo com a obra e por sua coragem e senso artístico ao não deixar uma de nossas formidáveis autoras na mão, mesmo com um livro histórico e polêmico.
“Kinshi na Karada” é uma história emocionante de um Japão preso a uma filosofia distorcida totalitarista em que o povo camponês sofre com as sanções e o exército, que deveria ser o orgulho da nação, se excede pelas vizinhanças, como a China. Josiane trata dessa situação e não tem medo de expô-la como é, falando inclusive de casos famosos na História e construindo seus personagens em cima disso. Muitos são afetados pela guerra, positivamente ou negativamente.
“A morte dançava pelas planícies daquela terra”.
Shiromiya Kazue é um jovem filho de camponeses que perde sua família logo cedo e é vítima da fome e da desesperança que assolam a vila em que mora. Órfãos, ele e o irmão Satoshi têm que deixar sua casa e andam em uma carroça pelas ruas do Japão procurando ter como comer até que o inevitável acontece e macula o pequeno Kazue para sempre. Em troca de comida, Shiro é obrigado a se prostituir pelo irmão. A situação se estende ao ponto de nosso querido Shiro cair doente e é quando o anjo de sua vida, Mamoru Aiko, o salva dessa rotina de prostituição e ironicamente o leva para uma casa de prostituição.
Na Casa Ai, a vida de Shiromiya muda um pouco. Ele encontra uma família, um anjo/amigo com quem pode contar, as prostitutas que cuidam dele como a um irmão mais novo e a velha Nana (a querida Nana!), que mesmo rabugenta e desbocada, ama a todos com seu enorme coração. Ele aprende a dançar, mesmo que tenha que se vestir de mulher, e ganha um outro ofício que não vender o seu corpo para adquirir algum dinheiro e quem sabe sonhar com um novo e melhor futuro. A Casa Ai tem uma história linda, é uma herança a Mamoru de sua mãe, uma gueixa que foi muito famosa naquela região de Tóquio, e é uma casa muito protegida devido às duas amizades que Mamoru nutre. A Casa Ai é um refúgio para os excluídos da sociedade, um lugar onde as pessoas podem ser quem realmente são e se divertir por uma noite, mas também um lar para as prostitutas e pessoas como Shiro, cuja guerra afetou tão violentamente em todas as esferas.
Mamoru é amigo de infância de duas pessoas bastante influentes. Ryo, um empresário e comerciante muito rico e muito famoso, e Shin Sakamoto, que é sobrinho do Imperador japonês. Como vocês podem entender, a amizade dos três não foi fácil de ser construída e mantida, muito por conta do preconceito por Mamoru ser pobre, e pelo fato de ele ser o cafetão de um bordel. Contudo, Aiko, Ryo e Shin são inseparáveis, principalmente Aiko e Shin. O amor e amizade que os três nutrem é muito especial, e faz com que os três se apoiem, mesmo de forma distorcida, em todos os momentos do livro.
Ryo e Shin são dois personagens “amo ou odeio”. Ambos são preconceituosos, vivem em seu mundo particular e têm suas próprias agendas. Shin nutre uma paixão doentia pelo exército japonês, pela honra de seu imperador e seu país, além de acreditar completamente na causa da guerra e ser completamente contrário aos Estados Unidos e tudo que ele representa culturalmente, socialmente e politicamente. Contudo, com o decorrer do livro e a exposição das maldades que o Terceiro Reich pratica e como as coisas se desenvolvem no maquinário da guerra mesmo no próprio Japão, Shin começa a perder a razão e enlouquece. Apesar de tudo, Shin é uma pessoa honrada e ele acredita na justiça, o que faz com que esse personagem passe por reviravoltas intensas.
Ryo é diferente. É arrogante, preconceituoso e prepotente, contudo ele procura os livros do ocidente (coisa que Shin abomina) e busca se informar e absorver cultura. Ele demora a abrir sua mente e dar o braço a torcer, mas a sementinha é plantada e a terra é fecunda. Ele acha que a guerra é boa para ele, pois movimenta os seus negócios, mas sabe que ela é maléfica para outras pessoas. Ryo é o centro místico dessa história e isso o torna absolutamente fascinante. O comerciante tem sonhos premonitórios, que são acontecimentos importantíssimos para o livro, e nesses sonhos ele vê a mulher de sua vida, dançando para ele.
Os fios do destino desses quatro personagens se entrelaçam por todas as páginas. “Kinshi na Karada” não fala apenas de amor, mas também de amizade, preconceito, honra, beleza e sensualidade. Shiro é um personagem encantador, pois em meio a tudo que ele passou e passa durante o livro, o rapaz ainda mantém a cabeça erguida e repete para si mesmo “não pode ser pior do que já passei”. Essa frase afeta e muito Mamoru, que se esforça em uma batalha para não deixar que nada de mal aconteça ao menino novamente, batalha na qual ele falha três vezes, uma delas por não conseguir impor limites.
Mamoru é uma grande mãe. Tendo um segredo tenebroso escondido em seu passado, o qual nenhum dos seus amigos sequer pode saber, exceto por Nana, o cafetão vive com medo não só por isso, mas por um amor não correspondido que esfrega na sua cara dia e noite que todos os corpos, homens e mulheres, são mais desejosos que o seu. Em uma época em que a homossexualidade é extremamente condenada, Mamoru vive reprimindo seus sentimentos e engolindo muita coisa por causa de sua “paixonite idiota que um dia poderá nos botará a perder”, como claramente pensa Nana.
A história ainda nos traz um quinto personagem que vem para estremecer ainda mais o delicado piso de cristal em que todos os quatro pisam. Saito Jiro é um subordinado de Shin que observou de perto as crueldades da guerra durante sua estadia na Alemanha. Com um passado muito bonito, que explica a descoberta de sua sexualidade, Jiro se aproxima muito do sobrinho do Imperador, trazendo um pouco de humanidade para a mente em colapso de Shin e calma para um coração já conquistado, mas ainda não tomado.
O livro transcorre lentamente a princípio, para que Josiane Veiga possa tecer os fios de sua história e criar um pano de fundo consolidado. Contudo, a partir de determinado momento, “Kinshi na Karada” toma forma e começa a girar em uma velocidade altíssima, com acontecimentos se atropelando e os personagens tendo que cada vez mais lidar com seus medos, inseguranças e vontades. No decorrer da narrativa, amizades se formam e se desfazem, injustiças acontecem e a guerra se encaminha para o fim.
O que mais me tocou em toda a leitura foi o quão real o livro me pareceu. Em vários pontos eu conseguia encaixar a história acontecendo durante a Segunda Guerra Mundial. São romances e amizades possíveis, que até hoje acontecem, mas que naquela época eram amarrados e fadados ao fim devido ao preconceito, medo, insegurança e a violência que acabava com todos psicologicamente e fisicamente. Os primeiros capítulos do livro chegaram a me chocar um pouco, por conta da violência que Shiro sofre. Não por ser explicito, mas por se tratar de uma criança que tem que vencer na vida de alguma forma, como tantas crianças que nós vemos por aí. Ao fim, eu me vi torcendo por Shiro e Mamoru mais do que tudo, para que fossem felizes, tivessem paz e encontrassem nos braços de alguém o amor que eles tanto dedicam aos outros na Casa Ai.
Convido você, nosso leitor, a entrar no Corpo Proibido e se deliciar com essa narrativa empolgante, emocionante e real. O livro é rápido de devorar, pois as coisas estão fluindo, mas como em um castelo de cartas, um pequeno sopro faz desmoronar tudo que foi criado. Desafio, ainda, que ao final do livro você não procure correndo a sequência, Jiyuu na Karada! Pelo menos vocês terão sorte, pois ela sai dia 06 de julho, enquanto eu estou aqui relendo e relendo há meses, querendo não perder a emoção para continuar a história.
Obrigada, Josiane Veiga!
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