Fujoshi Eye ESPECIAL: Um século de diversidade com...Krazy Kat!

Há 100 anos surgia o personagem andrógino, masoquista, apaixonado por um rapaz violento e que mudaria o jeito de se pensar quadrinhos

Fujoshi Eye ESPECIAL: Um século de diversidade com…Krazy Kat!

Fujoshi Eye ESPECIAL: Um século de diversidade com...Krazy Kat!

Aos leitores do Blyme, nesta madrugada, já finzinho de comemorações do dia do Yaoi, e que tanto lêem yaoi/BL: imaginem o seguinte roteiro

Homem—com esposa e filhos devidamente guardados em casa—orgulhoso, esquentado, macho, valentão e transgressor por natureza, com apetite por aventura e um pezinho bem fincado na delinquência se envolve com outro rapaz: etnicamente diverso, curiosamente andrógino, dono de pureza, inocência, simplicidade e sinceridade em níveis desconcertantes, frágil, emocional, abnegado, materialmente desapegado e absolutamente apaixonado por ele. Vivem anos de uma relação ora puramente romântica, ora de afeto e ódio unilaterais, eternamente abusiva e eternamente indissolúvel, onde tanto o valente pode tentar matar o puro, o puro pode mover montanhas para salvar o valente da morte, um querer ver o outro longe e uma vez longe, um não se aguentar de vontade de estar de novo com o outro: e juntos guardarem para eles ao menos um momentinho de paraíso.

Agora some isso a beijos roubados durante o sono, o compartilhar mútuo de um edredom sob a lua do deserto, juras de amor despudoradas e uma dose de fetiche, obsessão desenfreada e perversão sadomasoquista temperando o pacote. Um roteiro explosivo para um mangá yaoi, onde se acha tanto a classica tipologia de seme e uke levada ao seu extremo como um recheio psicoemocional tão forte quanto explícito, e em não raro apelando para o fantástico e o impossível para acontecer.

Instigante! E aí você, caro leitor, me pergunta, animado: “Legal, onde está esse super mangá yaoi que eu quero ler agora???”.

Bem…sim, esse trabalho existe e você pode ler.

Mas NÃO é um mangá yaoi.

Embora todos esses elementos estejam lá, na cara de todo mundo, não se trata de yaoi, ao menos não se levarmos a coisa ao pé da letra. É um trabalho norte-americano, feito por um autor norte-americano, não tem traço ou visual nem de mangá e nem de comic de super-heróis.

E agora em 2013 completa 100 anos de publicação com título próprio!

Sim, 100 anos. Mais antigo que a grossa maioria das chamadas pedras fundamentais de quadrinhos e literatura da diversidade (onde o moderno yaoi/BL bem se encaixa). No ocidente, de cultura conservadora, não havia ainda Allen Ginsberg. Jean Genet usava fraldas. Do outro lado do mundo, no Japão pós era Meiji fazia-se de tudo para jogar a rica cultura da homoafetividade de séculos atrás no fundo do armário: Natsume Soseki por essa época ainda escreveu “Kokoro”, livro onde o drama de um romance entre homens se desenvolvia agonicamente à sombra do remorso, também autoras como Akiko Yosano e Yuriko Miyamoto (que só apareceram na década de 20) eram vistas como o escândalo em prosa e verso. E, claro: Moto Haigo, autora daquele que é considerado o primeiro mangá BL/yaoi de todos os tempos (“Touma no Shinzou”) nem havia nascido (aliás: os PAIS dela provavelmente não haviam nascido também).

E não obstante, num canto perdido do Arizona (ou melhor, nas tiras diárias do New York Evening Journal), dois moços muito diferentes viviam felizes brincando muito à vontade com amor incondicional, experimentando a dor como prazer, equilibrando hipocrisias e sinceridades sociais, taras e obsessões além de inevitáveis confusões de gênero. Uma quase revolução para aqueles tempos, até hoje reverenciada e apreciada, e que agora passa a ganhar mais atenção sob a luz de seus incomuns relacionamentos. É isso aí: bem-vindos ao mundo árido, apaixonante e libertário de Krazy Kat!

Um gato, um rato, um tijolo: e as possibilidades são infinitas

Dingbat Family: e a primeira tira onde Ignatz aremessa uma pedra em Kat (26/06/1910)

“Dingbat Family”, 26 de junho de 1910: e Ignatz arremessa uma pedra em Kat pela primeira vez.

Krazy Kat e seu eterno parceiro na alegria e na dor, o rato Ignatz, surgiram primeiro como tapa-buracos de uma série de tiras bem pouco notável chamada The Dingbat Family, desenhada e escrita pelo cartunista George Herriman no início do século XX. Nos cantos dos quadrinhos, Herriman punha desenhos pequenos de um gato preto e um rato, onde o rato invariavelmente fazia algum grave abuso com o gato e o gato aceitava, ora surpreso e ora com patente boa-vontade. Em 26 de julho de 1910 o rato pela primeira vez cata uma pedra no chão e a atira no gato, que não revida: nascendo aí a gag recorrente que iria ser uma das principais molas motoras da interação entre eles depois. O dueto ganhou no geral uma boa resposta do público, motivou a divisão da tira em literalmente duas (uma da família e outra do gato e do rato, mostrada logo abaixo). E finalmente, em 1913, gato e rato saem definitivamente do contexto da família Dingbat e passam a viver suas próprias aventuras e desventuras na distante cidade de Coconino, Arizona.

Kat, Ignatz e o Guarda PupA história pode ser resumida em bem dizer uma linha: “Rato arremessa tijolo em gato que o ama”, e, sim, se repete ao longo dos 31 anos em que a tira foi publicada quase que incessantemente. Mas ao invés de cair na mesmice, acaba virando pano de fundo para o que realmente interessa: as nuances psicológicas de cada um daqueles personagens e seu comportamento. Mais fascinante do que ver o que Kat ou Ignatz fazem é ver COMO reagem ao que fazem, e POR QUE reagem desse modo. Kat, vivendo um louco e incurável amor por Ignatz tenta ajudá-lo em tudo, fazê-lo feliz e assim se oferece—com gosto—para que ele faça aquilo que mais o agrada, que é agredí-lo. Ignatz maltrata Kat de todos os jeitos possíveis e imagináveis: no entanto ainda arranja tempo para ficar com o gato, contar estrelas juntos, dormir junto com ele no mesmo edredom, e, sim, adora quando Kat lhe beija enquanto está adormecido (embora talvez não saiba o que acontece). Kat é no geral o pobre diabo de Coconino, feliz, ora vivendo na casa da tia e ora sem ter onde cair morto e Ignatz, teoricamente homem de família estabelecido se aproveita disso. Um policial, o canino Guarda Pup tenta fazer de tudo para que Ignatz não agrida Kat, e isso está longe de ser apenas um dever: Pup na verdade ama Kat talvez do mesmo jeito que Kat ama Ignatz, e não quer vê-lo ferido.

Não se trata de uma narrativa de eventos lógicos e em sequência—embora tenha alguns arcs longos de narrativa episódica, como o do Chá de Tigre (veja algumas tiras aqui) e o do Kiskidee Kuku, rival estrangeiro que tenta roubar o coração de Kat e quase causa a extinção da vila de Coconino—mas muito mais com a observação de um grupo de pessoas fascinantes cujos atos e hábitos gostaríamos de entender. Esse tipo de “narrativa sem ações decisivas” é também o mesmo tipo de espinha dorsal de muitas histórias românticas de hoje em dia, e de certo modo alimenta um segmento importante de fanfiction (o de textos de “fatias de vida”, mostrando como, por exemplo, Naruto e Sasuke passariam um dia juntos, fazendo algo que não tenha a ver com suas atividades de ninja).

Por si só, esse tipo de história não seria exclusivo de textos homoafetivos, ao contrário: exemplos sobram em que pares hetero são retratados no mesmo tipo de abordagem. Mas o que acontece quando um personagem da dupla retratada nesse tipo de idílio é patentemente homem, e o outro…é descrito como homem também, mesmo que hajam controvérsias? Aí foi onde aconteceu a grande ousadia de Herriman.

Mas é GATO ou GATA???

Krazy Kat na série de animação feita em 1963. Lá o “senhor Gato” das tiras de 1913 era mostrado como uma fêmea

Kat se desdobra por Ignatz, sonha com Ignatz, sofre por Ignatz, apanha de Ignatz, gostaria de se casar com Ignatz, espera plantado por Ignatz em encontros onde o rato não aparece, chama Ignatz de “Lil’Ainjil” (“Anjinho”, no inglês modificado e truncado que virou marca da tira, assim como os cenários que mudavam sempre de um quadrinho para outro), não raro some com Ignatz para algum canto escondido (para levar tijoladas das quais só se ouve o som e o gato derretendo-se de amor), guarda objetos jogados fora por Ignatz como um tesouro e só é feliz com Ignatz por perto. E Ignatz é um rato macho, com esposa e filhos. Além disso, Kat não se furta a papéis e práticas tipicamente femininas para os padrões da época, como ir ao salão de beleza, preparar o café-da-manhã para o amado e usar adereços delicados. Esse tipo de comportamento chegou a provocar um tanto de confusão, sobretudo entre eruditos: afinal, Krazy Kat é realmente gato ou gata?

Para esses eruditos—que constituíam uma grande fatia de público de Krazy Kat, e que até por sua postura eram no geral mais liberais que o estadunidense médio—o assunto podia não ser um tabu tão intocável quanto para outras pessoas, mas de todo modo levantava questionamentos desconfortáveis: afinal, quadrinhos de jornal ainda eram vistos acima de tudo como entretenimento para crianças, não importa o quanto fossem aclamados pela crítica, e temas como diversidade sexual seriam total e definitivamente proibidos. Krazy Kat lidava com um assunto ousado demais para os códigos da época, e que por isso, após a morte de seu autor foi acomodado em “versões mais familiares”. Foi por conta mais de estudos e análises de críticos que o personagem Krazy Kat passou a ser encarado não como um exemplo de pluralidade de gênero e orientação sexual, mas como entidade inquestionavelmente feminina: o início disso é uma antologia póstuma de tiras de Herriman onde o poeta e novelista E.E. Cummings faz um prefácio descrevendo o quanto Kat era uma típica heroína clássica, honesta representante de tipos e comportamentos imortalizados na literatura para moças e “inquestionavelmente exclusivos” de personagens femininas (as chamadas “girl tropes”), assim deveria portanto ser encarada como tal. Os intelectuais no geral acataram a opinião de Cummings, sentenciando: Krazy Kat virou “a gata”, o que era mais confortável para editores, comentaristas e para o grande público.

Era a opinião de Cummings, adotada e seguida, mas o que dizia Herriman? O fato é que o próprio autor durante a vida assumidamente não quis encarar o desafio de fazer o gato descer do muro, seja do lado rosa ou azul. O desenhista, ao longo de seu trabalho não se furtou de experimentar com Krazy Kat: chegou a pensar em fazer o personagem revidar às agressões de Ignatz, a se interessar por outros personagens, chegou a pensar em linhas diferentes de narrativa onde o binômio amor incondicional+tijolo não estivessem incluídos ou fossem protagonistas (a experiência mais longa nesse sentido foi talvez o arc de tiras do “Chá de Tigre”, mais focadas em um misterioso alucinógeno disputado pelos habitantes de Coconino). E sim, considerou mais de uma vez definir a sexualidade de Kat, o fazendo macho ou fêmea de uma vez por todas: seguindo a tendência do público em acreditar que Kat era uma gata—já que amava um rato macho—chegou a desenhar algumas tiras do personagem abertamente como fêmea.

Tiras essas que, como ele mesmo disse para o cineasta Frank Capra, foram parar no lixo:

“‘Sabe, eu recebo dúzias de cartas me perguntando a mesma coisa (se Krazy Kat é um macho ou uma fêmea). Eu não sei. Eu brinquei com isso uma vez; comecei a pensar no gato como uma garota—até desenhei algumas tiras com “ela” grávida. Mas não era mais “Kat”, estava muito preocupada com seus próprios problemas, como num dramalhão. Sabe como é? Aí eu percebi que Krazy era algo como um duende, um elfo. Eles não tem sexo. Então Kat não podia ser ‘ele’ nem ‘ela’. O Kat é um duende, uma fada…”

Em suma, venceu a sexualidade nebulosa do personagem, onde Kat continuava sendo “ele”, mas na verdade era o que bem entendesse, a partir de sua atitude e não da sociedade. Mas o que chamou—particularmente a minha—atenção, é que talvez a mistura de gênero de Krazy Kat seja algo mais inerente à própria forma do personagem pensar e agir do que o modo como o mundo o encara e sua “realidade”. Krazy Kat, na grossa maioria das tiras (e mais contundentemente naquelas de 1916 a 1923) é descrito por todos ao seu redor como “He”, “Señor Gato”, “Cousin”, “Uncle”, traduzindo, ele, senhor gato, primo, tio, enfim, sempre como um sujeito masculino. Em tiras de anos mais recentes (mais notável após 1930), é descrito como “ele”, e em algumas raras ocasiões como “ela”, o “ela” parecendo reservado a personagens que não o conheçam direito e se surpreendam com seus modos ou, em alguns casos, que o conheçam bem demais e talvez entendam que sua identidade de gênero vai além do superficial (Matilda, a esposa de Ignatz, por exemplo). No geral é o próprio Kat que de certo modo devaneia com um papel mais feminino—atendendo quando os filhos de Ignatz o chamam de “tia”, vestindo-se com um véu de noiva ou indo num salão de beleza, querendo ter os encantos da Rainha de Sabá.

E não se trata do caso de alguma Ed (de Cowboy Bebop) ou Sapphire, personagens femininos vestidos e tratados como homens erroneamente ou por conveniência. Kat não questiona e em vários momentos assume com toda a naturalidade sua identidade masculina, seja querendo ser um “tio” para os recém nascidos filhos de Ignatz, seja usando da educação cavalheiresca e elogios corteses para a franga Pauline, que admite ser bela, sexy e escultural, embora diga na mesma tira “com toda sua beleza, diva orgulhosa—você não pode me curar de “Ignatz”. Sou eterna e verdadeiramente para ele” (veja a tira aqui). As duas formas—insinuação de personalidade feminina misturada com condutas, nomenclaturas e identidades masculinas—apareciam muitas vezes em uma mesma tira.  Krazy continuou ao longo dos 31 anos de historinhas diárias tão “ele” quanto sempre, embora convença—e acima de tudo SE convença—que daria uma boa “ela” (em uma das tirinhas de 1915 chega a se questionar abertamente se deveria arranjar um marido ou esposa).

Talvez um dos primeiros exemplos—ou o primeiro em quadrinhos—que se permitia uma atitude tão flexível em relação à sexualidade e por isso mesmo, iconoclasta. Diversidade, longe de ser uma questão mais banal, ou encarada com naturalidade, no contexto da época era literalmente um desafio no meio do fogo, onde Herriman poderia ter se queimado gravemente. Lembrem-se: estamos falando de um período entre 1910 e 1940. De Estados Unidos. De uma sociedade cristã conservadora, patriarcal e dada a excluir o diferente. Haviam bancos marcados nos bondes e ônibus para separar pessoas “de cor” de pessoas “normais”. Estrangeiros eram vistos por extremos, ou como “exótica gente da mais fina civilização” (ricos) ou “escória geral que veio invadir nossa boa América” (todo o resto) e na prática era quase impossível para um homem caucasiano se casar com uma mulher oriental ou indígena (e o oposto, uma mulher caucasiana se casar com um indígena ou oriental era visto como escândalo, ofensa e algo totalmente impossível). Foi durante esse período que mulheres começaram a votar em todo o país—movimento de conquistas recentes, árduas e visto muitas vezes com reservas. E simples desquitadas amargavam o fundo do poço da exclusão social.

Em meio a esse cenário, como lidar com um personagem homossexual/plurisexual (ou, talvez mais que isso, francamente homoafetivo) que consistiria no mais absoluto dos tabus? Herriman lidou. E deixou um legado que ao longo dos 100 anos seguintes se manteve atual, jovem e interessante, e que pode hoje ser visto em todas as suas nuances, onde assuntos intencionalmente esquecidos podem ser analisados: finalmente longe da cultura do socialmente conveniente ou do calar-se sobre temas espinhosos. Estava tudo lá, afinal.

Sim, o gato pode ser um gato masculino: na verdade é o que quiser e muitas vezes quer ser homem, assim como adora agir como mulher, o que quer é viver feliz. E, sim, para ser feliz ama incondicionalmente um rato, cafajeste e inegavelmente macho. O rato corresponde, seja dormindo junto, seja atirando-lhe um tijolo: e o gato ama levar tijolada, tem prazer junto com a dor. Enquanto isso o cachorro, masculino e defensor da lei, defende o gato por estar apaixonado, não olhando para gênero: se é ela ou ele, não importa: é “Kat”, isso basta.

Pensar que isso é de 100 anos atrás chega a ser surpreendente. É de se admirar que tenha sido publicado: graças ao mecenato entusiasmado de William Randolph Hearst, que garantia o pagamento e a sobrevida de Herriman, já que Krazy Kat era tira com apelo comercial limitado que não veria lugar em outros jornais. É mais de se admirar ainda que tenha chegado nos idos de 2013, em que se lida com BL e arte homoafetiva preservado e intocado, sem passar pelo banimento que afetou outros personagens de quadrinhos em situações parecidas, como Mac & Tosh—The Goofy Gophers (Warner Brothers). Ainda que não tenha bishounens longilíneos e de olhos grandes, imagens rebuscadas e sua arte seja pouco mais que um rabisco, Krazy Kat é uma ótima pedida para o fã de BL/yaoi, lidando mais a fundo em questões que povoam o gênero do que muitas obras. Seja pelo lado das paixões obsessivas e violentas, ou seja pelos momentos de ternura entre os protagonistas, capazes de derreter um coração de pedra.

E, se a questão de traço ainda incomodar, quem quiser (ou puder) está convidado a fazer novas releituras, por exemplo nekomimi com os personagens de Krazy Kat em fanart. Daria certo, e seria bem-vindo: aqui, em Coconino ou em qualquer lugar onde tenham entendido e embarcado na fantástica viagem da obra de Herriman.

 

Um gato de 9 elementos de BL (menos um)…muito antes do BL

 

Em 1946, E.E. Cummings falou muito nas características chave de personagens femininas serem aplicáveis para Krazy Kat. Mas e as características e clichês de yaoi (as chamadas “yaoi tropes”), será que não estão lá também? Veja abaixo e confira:

1) O seme abusivo: Ignatz, por sua essência. Esquentado, valentão, mal-humorado e arrogante, ele não quer Krazy Kat longe, ao contrário: o procura avidamente para atirar-lhe um tijolo na cabeça—é obcecado com isso, a ponto de se endividar comprando tijolos! Na verdade, consegue fazer com que o gato faça tudo o que quer—ou quase tudo, já que o Kat parece incapaz de atender suas eventuais ordens de se afastar. Casado e com filhos, mulherengo, por vezes criminoso, não parece interessado em mudar, nem pelo bem (o amor do Kat) nem pelo mal (Guarda Pup o jogando na cadeia). Embora por muitas vezes divida o dinheiro, a comida e o edredom de Krazy Kat no meio do deserto, fala mal do companheiro quando está no meio das ditas pessoas de bem de Coconino, e já tentou à sério matar o pobre gato mais de uma vez. Mas vive uma realidade curiosa: não vive sem Kat, já se desesperou ao imaginá-lo morto e ama secretamente receber seus beijos durante o sono.
Um irmão em BL: Swordfish, de Under Grand Hotel.

2) O uke puro, inocente e constantemente abusado: Krazy Kat. Não importa quanto Ignatz o trate mal, ele está sempre e para sempre às ordens de seu amado rato. Não vê maldade nos tijolos jogados em sua cabeça, admitindo-os como “provas de amor” (mesmo que doloridas), por vezes espera na neve e na chuva encontros marcados com Ignatz para os quais ele não vai, guarda como tesouro as coisas que o rato joga fora e responde às ofensas do outro o chamando apaixonadamente de “meu anjinho”. Dono de um coração totalmente bom (é comum vê-lo ajudando ativamente os mesmos membros da sociedade de Coconino que no geral o desprezam), sonha em ser feliz com Ignatz, mas não faz questão de nada, apenas de estar ao lado dele: convive amistosamente com a esposa do rato, Matilda, cuida dos filhos do casal, e também não vê a charmosa Pauline, mulher cortejada por Ignatz como rival. É o clássico uke que existe às pencas em yaoi e obras afinadas com discursos homoafetivos (indo de Ginji Amano, do polemizável Get Backers a Suuichi Shindou, de Gravitation) que no geral tudo aceita com um sorriso, que tudo admite por seu amor, ainda que o objeto de afeição não valha em si um tostão furado.

3 ) O wanko-seme (seme protetor)…ou quase (na verdade: o gentil e protetor rival do seme, eternamente ignorado): Comum em shoujo, comum em yaoi ou em narrativas dramáticas: do mesmo material que produziu personagens como Dee (do BL F.A.K.E) ou Franz d’Epinay (do anime Gankotsuou) é feito o Guarda Pup. No começo apenas um aguerrido defensor da lei e da ordem (que encara como desordem imperdoável os arremessos de tijolos que Ignatz faz contra a cabeça de Kat), mais para frente na série acaba se confessando verdadeiramente apaixonado pelo gato, que no geral o vê apenas como um bom cavalheiro. Pup trata bem Kat, ao contrário de Ignatz, e faz questão absoluta de protegê-lo justamente dos abusos do rato (mandando o—no fim das contas—rival para a cadeia por porte ilegal de tijolo mais de uma centena de vezes). Com isso acaba tirando de Kat justamente sua fonte masoquista de prazer. Pup não desiste, não impõe ultimatos, mas parece incapaz de entender as reais vontades de seu objeto de afeição.

4) Uke andrógino ou feminizado: Krazy Kat, novamente. Ele ao longo de 31 anos de tiras tão bem aceitou o papel de menina nessa história, que motivou os críticos a lhe chamarem de “gata”, enquanto o autor Herriman o marcava como “ele”. Kat adora o belo e o delicado, é normalmente a alma gentil que chora e se emociona, que não se envergonha em usar adereços femininos, em ser a “Julieta” de seu “Romeu” Ignatz, em cuidar de bebês, de tarefas domésticas ou em tentar ficar bonito “como uma rainha”. E por vezes atende melhor a ser chamado no feminino. Não obstante continua sendo “ele”, é educadamente cortês com mulheres e costuma se identificar mais no masculino. Qualquer semelhança com a multidão de andróginos com tratos femininos que habita a mente das fujoshis, de Shun de Andrômeda e Afrodite de Peixes (ambos de Saint Seiya, mangá shonen sempre na lista de favoritos do público de BL) aos explicitamente homossexuais Yuuen de Wild Rock, ou Linneus, da web Comic Teahouse, pode até não ser coincidência…mas funciona exatamente igual.

5) A esquisitice transcendente de gênero: aqui não estamos falando da ambiguidade de Krazy Kat, mas do clássico personagem coadjuvante que DECIDIDAMENTE parece algo saído de outro mundo brincando abertamente mesmo com alguns conceitos tabu, como nekomimi, personagens de sexo duplo, androides, etc… Vários mangás yaoi apresentam algum personagem ou partes com conteúdos assim. E, curiosamente…lá está algo parecido em Krazy Kat: o avestruz Walter Cephas Austridge, personagem sempre descrito como masculino, sempre envolvido com eventos estranhos, que por vezes fala inglês e por vezes parece esquecer o idioma e só fala “Geevim! Geevim!” Walter, no breve “arc” do Feijão Mexicano Bandido, bota um ovo na cadeia. Desse ovo sai um avestruzinho que o chama de “papai”. Quem pensou em m-preg agora, acertou!

6) O prazer em forma de dor: O tijolo arremessado por Ignatz na cabeça de Kat, que o gato recebe apaixonadamente. Kat gosta sim de levar tijolada, embora em algumas ocasiões chegue a se queixar de que dói. E Ignatz é positivamente obcecado em jogar tijolos na cabeça de Kat, gastando todo o dinheiro em tijolos, fazendo dívidas para comprá-los e indo preso por ser apanhado os arremessando. Por vezes o ato da tijolada acontece fora do campo visual, em momentos intensos.

Não preciso ir longe; muitas teorias já foram feitas sobre esse arremesso de tijolo ser na verdade uma alegoria de ato sexual, e no caso eu diria: um ato violento, clandestino, bruto, pesado, passional, compulsivo e feito às escondidas nos intervalos de tempo. Lembra, sem concessões, de tantas histórias BL onde a agressão se confunde com o prazer e cria um estranho vínculo de dependência (como Fujimi Orchestra e Junjou Romantica, por exemplo).

7) Mulheres raras, rasas, sem expressão ou apenas incômodas: elas mal aparecem na história, e quando aparecem no geral é em algum papel de fundo, quase sempre reclamando. As personagens femininas de Coconino se resumem a matronas (como a tia de Kat), matronas cheias de filhos (Matilda, esposa de Ignatz, ou a chiuaua mãe solteira), crianças e divas que mais atrapalham que ajudam (como Pauline e Fifi). Acabam largadas para escanteio em nome de sentimentos mais honestos (como o amor de Kat por Ignatz, a obsessão de arremesso de tijolo de Ignatz em Kat, o amor de Pup por Kat), como se fossem ou parte do cenário ou objetos de desejo impróprios e inatingíveis. Finalmente, Kat por vezes é confundido com uma mulher (normalmente quando é tingido de branco), e recebe algumas raras cantadas de Ignatz nessas ocasiões.

8) Prometidos pelo destino: Tema de alguns mangás BL como Mirage of Blaze, ou de algumas obras que flertam acintosamente com o BL, como Please Save My Earth, esse elemento também está presente nas tiras de Krazy Kat. Não só o destino parece ter escrito a vida de Kat e Ignatz juntos desde eras imemoriais—é mostrado que uma princesa egípcia ancestral de Kat havia se envolvido numa louca paixão com um rato ancestral de Ignatz, o que teria atraído a desgraça para seus descendentes—como em vários momentos mostra inusitados parentes de Kat (como o Peixe-gato e o Pássaro-gato) convivendo felizes com parentes de Ignatz aquáticos ou alados. Pelo visto a força que une ambos na alegria e na dor é mais forte do que um envolvimento superficial…

9) Um mundo liberal: No geral é uma característica criticada de alguns textos e mangás yaoi ou próximos disso (como várias obras da CLAMP), e mais notadamente constante em fanwork: a ideia de se criar um mundo totalmente flexível, que aceita qualquer forma de sexualidade sem implicância ou preconceito, e onde quase todo mundo é ambíguo, tolerante ou gay mesmo. Por várias vezes é encarada negativamente como uma utopia absurda e distante dos problemas que homossexuais passam na vida real. Mas as tiras de Krazy Kat não são a vida real, e nelas o problema não é um gato (aparentemente macho) amar um rato (macho) e ser amado por um cachorro (macho). E nem tampouco consiste em problema que um avestruz macho bote um ovo, de onde sai um avestruzinho que o chama de “papai”.. No geral os outros personagens não dão a menor importância aos interesses sentimentais (ou sexuais) alheios, se importando bem mais sobre Kat falar sem erudição e ser socialmente inferior a outros habitantes de Coconino e que Ignatz seja um delinquente do que como eles interagem. Curiosamente, as mulheres da história também adotam o mesmo comportamento: Pauline flerta com Kat e nunca se vê Matilda com ciúmes de Kat, na verdade ela costuma—ao contrário do marido—tratá-lo com bastante civilidade.

Selo de 32 cents com Krazy Kat e Ignatz

Uke, em japonês, significa “o que recebe”. Mesmo que sejam…tijolos!

E o elemento que não combina com o clichê yaoi:

Regra de altura: em muitos textos BL, o seme é mais alto que o uke, as vezes bem mais alto. Em Krazy Kat acontece o contrário: Kat é muito mais alto que Ignatz. Mas alguém tem dúvidas que Kat seria (ou melhor: é) o uke da relação? Ou ainda há quem acredite que Kat não seria um uke, a tira não teria nenhum subtexto homoafetivo e a atração do gato por Ignatz seria só “uma profunda amizade”? Seja lá como for, o fato é que essa diferença de altura—o contrário do clichê BL—não muda em nada a natureza dos personagens.

Para saber mais:

http://www.comicstriplibrary.org : acervo online com tiras publicadas entre os anos 1916 a 1923

International Team of Comic Historians : acervo com diversas tiras do arc “Chá de Tigre” (1936)

Análise acadêmica de Elisabeth Crocker sobre a sexualidade em Krazy Kat

http://www.ignatzmouse.net/: fansite bilíngue (francês e inglês) de Ignatz, com fórum, acervo de tiras e outras informações.



Sobre Deneb Rhode

Deneb Rhode, quase 42 aninhos, mora em algum lugar de São Paulo. É jornalista, redatora, revisora, dramaturga, cinegrafista, gamer, micreira, geek, ficwriter, quilteira, motorista, tosadora, cheiradora de gatinhos, e recalcitrante, não necessariamente nessa ordem. Uma das pioneiras do jornalismo Web no Brasil (sério!) já rodou o mundo, já viu um pouco de tudo e agora ocupa o prestigioso posto de mafagafo oficial do site Blyme Yaoi. Ver todos os tópicos de Deneb Rhode

4 Comentários a Fujoshi Eye ESPECIAL: Um século de diversidade com…Krazy Kat!

  1. Adorei a matéria! Realmente muito boa e muito bem analisada, me deu vontade até de ler essa tirinha!

    E como sugerido no texto, fui fuçar um pouquinho e achei um fanart que acho que fez jus as tirinhas, principalmente em relação ao gênero de Kat.
    http://sailorptah.deviantart.com/art/There-Is-A-H
    My recent post Apresentação + Super Novidade!

    • tanko

      ahahahah, adorei esse fanart! *o* Obrigada pela colaboração.

  2. tanko

    Achei que esse texto da Deneb é uma verdadeira pérola. Sei que ela é uma profissional que trabalha com texto há muitos anos, mas sempre me surpreendo como ela consegue escrever TANTO, tão rápido, com tanta fluidez e conteúdo.

    Quando ela não quis revelar o nome do "BL" que escolheu, logo imaginei que seria algo no mínimo inusitado, mas ainda assim fiquei em choque com a surpresa e adorei. Tenho orgulho de administrar o site onde este artigo encontra-se hospedado.

  3. Nano

    Deneb,

    O nível das informações, e o modo de colocar as coisas nesse texto, a contextualização que amarrou muito bem cada observação acerca da obra, é o tipo de material que tira do anime, do mangá,da HQ, e particularmente do que gira em torno de algo polêmico como a diversidade, o estigma de se tratar de algo raso, e limitado, que em geral recai sobre essas mídias. É uma delícia ler algo bem escrito e tão "gratuito" assim, no sentido de informar, formar opinião, sem ser pretensioso. Muito bom MESMO.

    🙂

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