A Evolução da Cultura Boys Love: O BL Pode Despertar Mudanças Sociais?
Esta é uma tradução do artigo The Evolution of “Boys’ Love” Culture: Can BL Spark Social Change?, publicado no site Nippon.com em 24 de setembro de 2020.
Boys Love é um gênero de mangá e livros homoeróticos voltados para leitoras mulheres. BL se expandiu para anime, séries televisivas, vídeo games e outras mídias. O BL pode gerar mudanças sociais reais, inclusive maior aceitação de minorias sexuais? A pesquisadora de mangás Fujimoto Yukari compartilha suas visões sobre a cultura BL.
Séries televisivas Boys Love da Tailândia conquistaram o coração de muitos fãs no mundo todo recentemente. 2gether, a história de amor de dois universitários, ganhou vários fãs, com um canal no YouTube oficial com legendas em inglês, chegando até ao topo das Trends mundiais no Twitter. Séries televisivas BL tailandesas, disponíveis através de serviços de streaming e canais de TV, também ganharam uma fanbase no Japão.
Boys Love se originou no Japão, espalhando-se pelo mundo todo como um gênero de mangás e animes. De acordo com Fujimoto Yukari, pesquisadora de mangás shoujo e questões de gênero, há um interesse crescente pela cultura BL na Tailândia, China, Taiwan, Coréia e outros países asiáticos. Cada um evoluiu seguindo um caminho diferente, mostrando a complexidade das circunstâncias sociais em que se encontram as pessoas LGBT+. Mas quais são as origens do BL no Japão, e como isso mudou ao longo do tempo?
A Revolução de Takemiya Keiko e Hagio Moto
Fujimoto acredita que o BL, de forma geral, surgiu primeiro como shounen-ai (amor de garotos) em mangás voltados para o público feminino na década de 1970, trazendo retratos de laços fortes e encontros eróticos entre garotos adolescentes.
Até a metade dos anos 60, a maioria dos mangás para meninas eram criados por artistas homens. Mas no final da década, surgiu uma nova onda de artistas mulheres, que nasceram depois da guerra. De repente, artistas mulheres que não eram muito mais velhas do que seu público começaram a produzir mangás que elas mesmas queriam ler. Isso criou a ideia de amor entre garotos. Antes, mangás para meninas tinham protagonistas femininas, o que inevitavelmente limitava sua expressão devido à posição das mulheres na sociedade. Com protagonistas masculinos, as criadoras podiam mostrar personagens mais independentes e proativos, além de incluir narrativas ousadas e eróticas. Este feito trouxe uma oportunidade, e as leitoras abraçaram fervorosamente essas obras que retratavam amor e apego entre personagens masculinos.
Um grupo de autoras mulheres, incluindo Takemiya Keiko e Hagio Moto, produziram os primeiros mangás shounen-ai. Elas foram chamadas de “Grupo das flores do ano 24”, uma referência à performance brilhante de sua geração e suas datas de nascimento em meados de 1949 (ano 24 da era Showa). As criadoras tinham a intenção de abalar a sociedade através de novas formas de expressão nos mangás. No mangá autobiográfico Shounen no na wa Jirubeeru (O Nome do Garoto é Gilbert), Takemiya disse que queria despertar uma revolução através de seus mangás shoujo.
Hagio Moto lançou sua série Pou no ichizoku (O Clã Poe) em 1972. Ela conta as façanhas dos “vampanellas” (vampiros) de aparência jovem Edgar e Alan através dos séculos, e é considerado um clássico imortal entre os mangás shoujo. Em seguida, em 1974, ela lançou Touma no shinzou (O Coração de Thomas), uma história que se passa em um internato na Alemanha.
Então, em 1976, Takemiya começou Kaze to ki no uta (O Poema do Vento e das Árvores), série considerada o ápice do shounen-ai. O mangá retratava o amor homossexual do belo jovem Gilbert, mas também incluía cenas intensas de estupro e incesto, o que deu origem a um fenômeno.
Na época, a revista mensal Bessatsu shoujo, trazendo histórias de Hagio e Takemiya, vendeu mais de um milhão de cópias por edição. Era um admirável mundo novo, onde histórias publicadas por meios de comunicação em massa refletiam os valores de mulheres jovens nascidas no pós-guerra.
No final dos anos 1970, muitas revistas traziam obras que continham relações entre homens. Então, em 1978, uma revista dedicada ao gênero foi lançada: June. Ela era conhecida por ter um forte foco estético em beleza jovem, e trazia seções culturalmente conscientes sobre literatura, livros, arte e filmes.
Yaoi se Espalha Pelo Mundo
No final dos anos 1980, houve um forte aumento em obras derivativas conhecidas como yaoi, mangás paródia publicados como doujinshi – revistas amadoras publicadas de forma independente. Alguns dos primeiros traziam paródia do mangá para garotos Captain Tsubasa (Super Campeões). O Yaoi pegava personagens famosos de mangás e animes para garotos e os colocava em situações românticas. Obras BL comerciais surgiram de tais quadrinhos yaoi, envolvendo histórias de amor adolescente para criar um entretenimento mais animado.
Editoras perceberam o valor comercial do yaoi no início dos anos 90, e lançaram revistas dedicadas ao BL. Autores que inicialmente tiveram fama em doujinshi receberam ofertas para desenhar mangás. Graças ao lançamento de revistas BL como a Be × Boy, o BL tornou-se um gênero comercialmente estabelecido. Mas foi a autora de mangás Ozaki Minami, que originalmente era autora de yaoi, que despertou a febre mundial do BL japonês com seu mangá Zetsuai 1989 (Amor Desesperado 1989). Ele foi lançado na Margaret, uma revista mainstream semanal de mangás shoujo, e supostamente era uma criação original. Entretanto, apesar de os personagens e a história serem novos, eram obviamente inspirados em Captain Tsubasa, o que coloca esta obra no gênero yaoi.
BL na Ásia e Regulamentação da Expressão
Hoje em dia, há muitos BL comerciais que são descaradamente eróticos. De fato, até recentemente, o Japão tinha pouca censura de expressão artística em obras BL. Fujimoto acredita que a liberdade de expressão que existe no Japão contemporâneo é uma reação contra a regulamentação da livre expressão que ocorreu durante a 2° Guerra Mundial.
Ela explica que as pessoas que entendem a mudança drástica nos valores pós-guerra, especialmente os mais velhos e mais poderosos, inclusive conservadores, sabem mais dos perigos de regulamentar a liberdade de expressão através da lei. O respeito convencional japonês por lógica e moralidade permite que a fantasia exista como uma forma de aliviar o estresse. Com BL, conteúdo erótico explícito é visto como algo diferente da pornografia simplesmente porque enfatiza a relação entre dois personagens. Além disso, material erótico para mulheres raramente é levado a sério. Mas recentemente, o BL sofreu regulamentações mais rígidas. Em Tóquio e outras jurisdições, obras BL estão cada vez mais sendo consideradas como literatura prejudicial.
A situação varia em outros países asiáticos. Na China, novels BL têm grande popularidade, mas cenas de amor entre homens não podem ser incluídas em séries televisivas. Chen qing ling (O Indomável), série de fantasia histórica, foi baseada em uma novel BL online, mas foi reformulada para televisão como um “bromance”, mostrando uma ligação forte entre os personagens masculinos. Expressões de amor entre os dois são apenas insinuadas. Até escrever novels BL traz riscos.
Fujimoto diz que o governo chinês não estipula o que está sujeito à censura, mas cenas íntimas são arriscadas. Obras BL online já receberam acusações duas vezes. Em 2018, um criador de BL recebeu uma pena de 10 anos de prisão por publicar sem a aprovação do governo (a China tem um sistema de licenças). Mas, apesar dos perigos que enfrentam, os autores de BL não desistiram e têm uma fanbase dedicada.
Mangás BL também são populares na Coreia do Sul, mas o país tem uma regulamentação rígida com conteúdo sexual. Fujimoto acredita que fatores sociais tornam a vida de pessoas LGBT na Coreia mais difícil do que no Japão. Em contrapartida, casamentos de mesmo sexo foram legalizados em Taiwan em 2019, e fãs de BL que frequentavam um evento de doujinshi no país participaram ativamente no movimento em prol da legalização.
Séries BL Tailandesas Trazem Maior Aceitação para Pessoas LGBT
A Tailândia em particular está presenciando o nascimento de sua própria cultura BL, especialmente em séries de TV.
Fujimoto diz que a história de séries BL na Tailândia começou em 2013, quando a primeira série genuinamente BL foi exibida. Em 2016, uma série chamada Sotus foi um grande sucesso. Mas BL só se tornou mainstream recentemente. Agora, uma gama diversa de séries BLs foram produzidas, trazendo uma conexão entre fãs de BL e gays. A série Dark Blue Kiss abordou temas como discriminação e sair do armário para os pais, mas também mostrou cenas de amor que tinham apelo para os fãs de yaoi. Ela foi criada para que o público naturalmente apoiasse o casal principal.
Há movimentos significativos em busca do reconhecimento legal de casais gays no país. Em julho de 2020, a união civil foi aprovada pelo gabinete tailandês, permitindo que casais do mesmo sexo adotassem filhos e deixassem herança. Se for aprovada pelo parlamento, seria um grande passo em direção à legalização do casamento de mesmo sexo.
A Controvérsia do Yaoi – Diferente da Realidade
Ao contrário de como é em Taiwan e na Tailândia, no Japão, há uma grande discrepância entre a vida de homens gays de verdade e personagens de BL e obras similares. Fujimoto acredita que essa diferença é o motivo pelo qual o gênero não promove apoio ou solidariedade com as pessoas gays na sociedade japonesa no mesmo nível.
No início dos anos 90, houve um debate acirrado sobre yaoi em uma revista feminista. Surgiu um antagonismo com comentários de que yaoi e BL estavam tratando sexo gay com superficialidade, fetichizando, fantasiando e impondo normas estéticas em pessoas gays.
O homem que publicou essas críticas ao BL disse que, quando era jovem, ele acreditava que era a única pessoa gay que existia, mas que foi salvo por histórias de amor entre homens como Kaze to Ki no Uta. Entretanto, yaoi e outras obras de fãs começaram como paródias de anime e mangá, e foram criadas para serem fantasia. Os autores claramente não têm interesse algum em pessoas gays de verdade. Fujimoto sente que esse foi um fator que atraiu críticas ao BL.
Mas essa “controvérsia yaoi” também levou a uma reavaliação gradual das formas de expressão da parte de autores e leitores de BL. Em BL shinkaron (A Teoria da Evolução do BL), a ativista lésbica e acadêmica Mizoguchi Akiko escreve que, desde o final dos anos 2000, autores talentosos surgiram e passaram a produzir um novo estilo de BL que retrata relações entre homens com mais complexidade e sensibilidade.
O BL evoluiu e se tornou um gênero que oferece um potencial infinito para mostrar novos tipos de relações que estão fora das normas sociais que restringem relações entre homens e mulheres. Eles chegaram a um novo nível de diversidade e requinte. Com as Olimpíadas de Tóquio, tanto o governo como a mídia passaram a pedir mais diversidade e inclusão, inclusive de pessoas LGBT. O clima geral da sociedade está mudando aos poucos.
O “Elo Perdido” para Quebrar a Maldição da Normalidade
Fujimoto acredita que séries de TV trouxeram o “elo perdido” para diminuir a distância entre a ficção BL e pessoas gays de verdade. Até recentemente, BL se limitava a mangás e novels. Mas séries de TV, com atores humanos, criam uma conexão natural com a realidade, apesar de obviamente serem ficção. Fujimoto sente que elas geram uma mudança subconsciente na percepção dos espectadores.
Fujimoto indica Ossan’s Love, uma série de sucesso que gerou um filme. Ela sente que a série foi uma obra de entretenimento que foi criada com cuidado, com uma abordagem casual, porém atenciosa, que foi bem recebida na comunidade gay.
Outro exemplo é Kinou Nani Tabeta (O que Você Comeu Ontem?), serializada em uma revista de mangás para meninos, escrita pela autora de BL Yoshinaga Fumi e que também se tornou uma série de TV. A história mostra a vida doméstica feliz de um casal gay de meia idade, um é advogado e o outro é cabeleireiro.
Na opinião de Fujimoto, as normas convencionais do Japão tendem a reprovar quem sai das normas sociais, o que leva à infelicidade dessas pessoas. Há uma discriminação inconsciente, mesmo entre os jovens, de que as pessoas gays, por serem anormais, são dignas de pena e precisam de ajuda. Agora, há sinais de mudança. Fujimoto acredita que se as pessoas assistirem séries sobre casais gays normais aproveitando sua vida doméstica, e perceberem o que têm em comum, isso pode gerar uma mudança na sociedade.
Representações de casais de homens gays também mudarão as percepções sobre os homens. Kinou Nani Tabeta? mostra Shirou, um advogado, preparando refeições em casa todos os dias. Um retrato realista pode ajudar os jovens a se livrarem das amarras da masculinidade estereotipada. Mas Fujimoto teme que o valor do BL seja diminuído com o crescimento recente de obras BL que simplesmente colocam dois atores galãs para fazer sucesso. Ela espera que as produções futuras tentem ter mais qualidade de apresentação dramática.
Enquanto isso, com uma percepção do público maior a respeito de mangás BL, Momo to Manji (Momo e Manji), um mangá histórico que se passa no período Edo, foi a primeira obra BL a ganhar um prêmio de mangá no Japan Media Arts Festival, organizado pela Agência para Assuntos Culturais do Japão.
Então, qual o significado do BL hoje em dia?
Fujimoto acredita que as obras BL estão quebrando as normais sociais, o conhecimento convencional e os estereótipos ao trazer uma representação sensível da diversidade das relações humanas. BLs realistas diminuíram a diferença entre a ficção e a vida real, e com as mudanças acontecendo lentamente em países como a Tailândia e Taiwan, obras BL que representam a vida comum podem acabar casualmente se infiltrando na consciência das pessoas, dando início a uma nova era.
Originalmente escrito em japonês. Entrevista e texto por Itakura Kimie do Nippon.com.
Comentários via Facebook
2 Comentários
[…] Independente do que digam, vários pesquisadores ao redor do globo e relatos de inúmeras pessoas dentro do fandom já comprovam que esse potencial existe e atinge novos fãs todos os dias. Recomendo que procurem os artigos e livros escritos por pesquisadores, como Yukari Fujimoto e Thomas Baudinette, caso tenham interesse no assunto. Inclusive, vocês podem conferir um texto traduzido da Yukari aqui no próprio Blyme. […]
[…] mais sobre a demografia e como o BL se originou, indico esse ótimo artigo da Blyme sobre a evolução da cultura boys love.Esse perfeccionismo acaba nos deixando imobilizados. Mas adivinha? Perfeição não existe. Quando […]