Passeando entre as inúmeras obras de bem dizer qualquer site de acervo de textos ou artes de fãs, você com certeza vai encontrar: não uma ou duas mas centenas de vezes, em categorias próprias ou escondidos na seção “Outros” trabalhos caprichosamente escritos ou minuciosamente desenhados sobre aquele show de TV ou aquela canção, mostrando seus personagens homens indo muito além da amizade, engatando romances tórridos e se atirando de cabeça em sexo, seja apaixonado ou devasso. Até aí, nenhuma novidade: é mais um fan work retratando um conteúdo fictício baseado num trabalho igualmente fictício, certo?
Mas aí se nota uma diferença que pode até passar despercebida num primeiro instante: o nome dos personagens não é bem aquele que está no show: no lugar de “Spock” está “Zach”, no lugar de “Loki”, “Tom”. “Dean” e “Sam” deram lugar a “Jensen” e “Jared” e não temos mais “Sherlock” e “Watson” e sim “Ben” e “Marty”. O texto não fala de personagens, mas dos atores do show: bem como os outros trabalhos logo ao lado, com bandas de rapazes, não se intimidaram em por os verdadeiros músicos em situações para lá de apimentadas. E mais outros, ali mesmo, acabaram de narrar a noite de amor apaixonada entre um zagueiro e um atacante de times de futebol rivais, que existem mesmo e você viu atuando no jogo da quarta-feira anterior em ferozes marcações.
E eis aí o fascinante (e um pouco desconcertante) mundo das fanfictions slash de pessoas reais: a arte de fazer de seu ídolo um personagem de altas aventuras e romances homoeróticos. Prática que ganha a cada dia mais adeptos e se extende para bem além do mundo artístico—há fanfictions de esportistas, políticos e celebridades no geral, sem distinção de origem. O fenômeno vem chamando a atenção de pesquisadores e intelectuais que tentam entender por que isso tem feito tanto sucesso. Seja pela disponibilidade de assunto, num mundo onde a imagem pública de quem é famoso tende a ficar em exposição até mais que as próprias obras de ficção, seja por uma mudança de comportamentos da sociedade, onde mulheres (reconhecidamente as grandes criadoras e consumidoras desse tipo de fanfic) ganharam mais autonomia e expressão, a verdade é que nunca se viu tanta gente de verdade aparecendo em picantes histórias de mentira, para o deleite de fãs passionais, em muitos casos capazes de realmente lutar pelos seus ídolos. Mesmo que esses ídolos em pouco ou nada correspondam à imagem deles que foi posta na fanfiction.
O que põe na mesa a dúvida: será ético e justo fazer um trabalho sobre uma pessoa real? Retratar alguém que existe e está vivo como algo que ele não seja, ainda mais em situações tabu na sociedade em que vivemos? Do mesmo modo que cresce o número de interessados em fanfiction slash de pessoas reais, aparece ao mesmo tempo um número também crescente de críticos, que acusam a prática de ser por natureza uma forma de dano ao retratado, mexendo com reputação e honra e podendo causar muitos problemas.
Para uns, uma grande falta de respeito, e para outros uma homenagem, a verdade é uma só: o fenômeno da fanfiction slash de pessoas reais existe, vai adiante e nunca esteve tão forte. E mais: nunca rendeu tanto para quem sabe mesmo aproveitar seus vastos prós e contras.
De onde isso veio?
É quase mais fácil dizer de onde a fan fiction de pessoas reais não veio do que de onde ela veio, já que parece algo totalmente entranhado na História da humanidade. Embora o termo fan fiction date de meados de 1965, com o surgimento dos textos alternativos de Star Trek, a ideia de contar histórias fantasiosas sobre pessoas de verdade é presente desde que o homem começou a contar histórias. As odes em louvor a heróis quase sobrenaturais da Grécia Antiga, as narrativas de bardos sobre feitos mais que extraordinários de cavaleiros medievais, quadros renascentistas com senhores sifilíticos que se mostravam com aparência irretocável e ainda antes, pinturas rupestres que davam conta de guerreiros sozinhos matando feras com vinte vezes seu tamanho já eram um indicativo de que muito se falava coisas que não existiam sobre pessoas que existiam. E a ideia de exagero, diminuição ou invenção de histórias (escritas ou não, para o bem ou para o mal) sempre foi privilegiada e acabava disputando espaço com a precisão histórica, ganhando a briga em muitos casos. Num exemplo, ainda hoje o quadro “Independência ou Morte” de Pedro Américo ilustra livros de escola como a imagem oficial da proclamação da Independência do Brasil—e o que se sabe é que D. Pedro I provavelmente não estava cercado de distintos cavalheiros em garbosos cavalos quando estava às margens do Ipiranga, mas sim em lombo de mula, cercado de mateiros e com trajes imundos e surrados, o que seria o normal em viagens daquela época.
Não havia até então uma grande—e assumida—distinção entre um relato realista e um fictício sobre gente de verdade: o que diziam sobre alguém importante era normalmente tratado como verdade (ou mentira viciosa caso fosse provado que não aconteceu), ou no mínimo como algum tipo de mitologia: acontecimentos reais enfeitados de uma improvável carga de irrealidade, mas que eram aceitos como “verdades” literais. Era o que acontecia com as histórias de façanhas de pistoleiros no Oeste Americano que desafiavam leis da Física, as histórias sobre santos e mártires de religiões voltando dos mortos, contos de nobres ou sábios encontrando demônios transfigurados ou, num exemplo mais brasileiro, os inúmeros “causos” de sertanejos dando conta de interações deles mesmos ou de seus ancestrais com seres de outro mundo.
O primeiro trabalho realmente aceito por estudiosos de literatura como FPR (Ficção com Pessoas Reais) foi uma série de textos feitos a oito mãos pelos irmãos Brönte —Anne, Charlotte, Emily e Branwell—entre os anos de 1826 e meados de 1844, que retratava o Duque de Wellington (o comandante que derrotou Napoleão Bonaparte na batalha de Waterloo) e seus dois filhos na vida real, Arthur e Charles , constantemente lutando contra um inimigo de nome Alexander Percy. Mesmo sem ter publicação até 100 anos mais tarde, o que chamava a atenção nesses trabalhos era a não intenção declarada de mostrar realidade: eles se assumiam como pura ficção ainda que seus personagens fossem gente que existiu, e mais, estava viva (o que ia na contramão do aspecto da narrativa até então, do enaltecimento ou exagero querendo convencer).
Bem mais tarde, já no século XX, a ficção literária com pessoas reais ganharia status de obra comercial, ainda que de um modo bastante controverso: na década de 20 a série de novelas “Fatty Arbuckle and the Time Pirates” mostrava o ator de comédias mudas Roscoe “Fatty” Arbuckle (aqui no Brasil rebatizado de “Chico Bóia”) viajando pelo tempo e—pasmem!—abusando sexualmente de diversas figuras históricas. A coletânea era uma alusão ao escândalo que afundou a carreira do comediante, acusado de estuprar e ferir mortalmente a aspirante a atriz Virginia Rappee num quarto de hotel em San Francisco, e obviamente não era uma obra elogiosa. Mas serviu para mostrar que o filão de histórias irreais com pessoas reais tinha muito futuro: duas décadas mais tarde estúdios de Hollywood faturavam um bom dinheiro com o lançamento de livros, novelas e contos em jornais sobre as peripécias de seus astros, que com seus nomes e identidades de fora da tela viviam aventuras ainda mais extravagantes do que as dentro dela.
Mas, no meio de tudo isso, e como ficava a ficção de pessoas reais homoerótica ou homoafetiva (que daria origem ao termo slash)? Embora o assunto fosse—e ainda seja, para muita gente—algo delicado, dá para ver que tanto quanto as próprias narrativas sobre feitos heroicos, estas também andaram junto com a Humanidade e chegaram aos dias de hoje, apenas variando o seu teor de acordo com a passagem do tempo. Se em algumas épocas alguns povos viam a conduta homoafetiva com hostilidade e portanto não a incluíam nos relatos dos feitos sobre pessoas reais (ou se incluíam era como algum tipo de mau exemplo ou algo a ser castigado), não dá mesmo para dizer que sempre tenha sido assim, ou que as histórias sobre gente de verdade envolvida em imaginadas relações com pessoas do mesmo sexo seja privilégio de tempos recentes.
A evidência disso está na tradição narrativa de diversos povos. Várias incluem histórias heroicas ou inspiradoras com amantes homossexuais, muitas extremamente antigas como as de Alexandre e Hefestion da Macedônia, do imperador Ai e seu favorito Dong Xian da dinastia Han chinesa, dos feitos e amantes do poeta árabe Abu Nuwas e do mestre budista Kobo Daishi, tido como o introdutor do nanshoku (prática onde um samurai tomava um rapaz mais novo como discípulo e amante) no Japão. E o fato de serem narrativas consideradas ao menos parcialmente mitológicas, ou com diversas contradições entre as inúmeras versões dos historiadores antigos, apenas reforça a ideia de que havia a chance de algum desses personagens aparentemente reais ter tido sua realidade expandida em vários pontos. Afinal, seria Hefestion tão belo quanto diziam? Ai teria cortado a própria roupa para não despertar Dong Xian? Abu Nuwas viveu todas as aventuras que diziam? Kobo Daishi realmente teria trazido o nanshoku para o Japão?
E mais: as histórias de romances, e a descrição de eventos seria totalmente verossímil, ou beberia em alguma fonte de imaginação? Embora seja aceito por consenso entre historiadores e biógrafos que vários desses personagens tinham ou tiveram inclinações ou relações homossexuais, não se sabe ao certo se todas as narrativas teriam fundo em realidade. O caso de Abu Nuwas é particularmente emblemático: de poeta passou a ser um personagem do imaginário árabe, uma espécie de Pedro Malazartes gay que figurou nos relatos de Mil e Uma Noites. Se imagina até hoje se vários amantes que que ele teria tido—dentre eles o próprio califa Muhammad Al-Amin, de quem foi muito próximo— não seriam mais que outro conto fantástico popularizado por tradição.
Na História mais recente, vemos a narrativa ficcional homoafetiva sobre gente real ser derivada de dois pilares principais: a ficção sobre obra visualmente realista e a ficção sobre grupo ou personalidade isolada.
Da ficção de obra visualmente realista, ou seja, cinema, TV ou teatro, onde o rosto dos personagens é o mesmo dos atores há a evolução clara de conceito: normalmente os fandoms de “shippers” (fãs que se dedicam a criar pares românticos de personagens, o chamado “shipping”) se iniciam unindo os personagens do show, e mais adiante unem os próprios atores em textos e imagens. Esse tem sido um jeito de autores de fanwork “driblarem” algums embaraços que o texto ficcional que gerou o fandom pode criar, como ambientação indesejada, algum dos personagens do par assumir alguma conduta que cause rejeição, ser afastado do seu par favorito dos fãs ou desaparecer/morrer no show. Um bom exemplo disso é a transição de parte do fandom Kirk/Spock (personagens) de Star Trek para o fandom William Shatner/Leonard Nimoy ou, mais recentemente Chris Pine/Zachary Quinto (atores), em prol de ambientações menos do tipo ficção científica e mais de universo contemporâneo. Em muitos casos—não todos—esse tipo de ficção acaba bebendo pouco de fonte externa: os atores retratados tendem a ficar mais parecidos com os personagens que fazem nos shows do que com eles mesmos em si, até como método de preservar ao máximo a química fascinante que originalmente prendeu a atenção.
A ficção sobre grupo ou personalidade isolada, por outro lado, é basicamente não-ancorada em um texto prévio: seu “nascimento contemporâneo” se deu como obras fictícias não-slash sobre bandas musicais, como Led Zeppelin e Beatles, baseadas apenas no visual dos integrantes dos grupos e na letra de algumas canções. Com o passar dos anos o componente homoafetivo foi se incorporando com força, sobretudo a partir da década de 90 nas fanfictions de boys bands , indo New Kids on The Block até as mais recentes sobre bandas coreanas como DBSK e SHINee. A ideia de ficção slash não baseada em texto prévio, mas em evento ou situação real (ainda que tão pequena quanto apenas uma imagem) passou a retratar também outros tipos de atividade, como times esportivos (ou rivais dentro de um esporte), participantes de reality shows e celebridades de um mesmo “universo” (como Família Real Britânica, cozinheiros famosos ou partidos políticos). Como não há um texto estruturado por trás, esse tipo de fan fiction tem uma tendência maior de beber das fontes de jornalismo de celebridades e fofocas de tablóides, o que acaba rendendo, curiosamente, personagens da fic mais parecidos com as pessoas existentes no mundo real.
Mas é ofensivo?
Há controvérsias sobre shipping de pessoas reais—especialmente os que flertem com tabus ou situações socialmente polêmicas (como é bem o caso do slash shipping )—ter uma característica ofensiva ou no mínimo excessivamente intrusiva. Algumas pessoas que condenam a prática dizem que isso seria “atentar contra a honra” dos envolvidos, ou em alguns casos “divulgar boatos maldosos”.
E que se admita: há algum fundo de razão nesse pensamento. Afinal não são pessoas de papel e tinta, mas gente de carne e osso cuja vida pode ser afetada por algum rumor sobre sexualidade, com consequências indo bem além do momento onde se desliga o computador ou se põe o celular ou tablet de lado. Por vezes um comentário que inicia como fantasia pode sim tomar um ar de coisa verdadeira, ainda mais num meio de comunicação tão poderoso e volátil quanto a Internet. E não são poucos os exemplos disso, mesmo antes da Web e redes sociais: que se lembre, por exemplo os rumores apenas anedóticos sobre homossexualidade que não chegaram a ver capas de revistas mas derrubaram a carreira de Mário Gomes, galã de novelas da década de 80: vaga na de astro na Globo perdida e demissão por suposta “imagem pública danificada”. Ou o caso do goleiro da Seleção Argentina na Copa de 1990, Sergio Javier Goycochea, que dois anos antes quase teve que se retirar dos gramados por conta de boataria: começou dando conta de que ele teria uma grave lesão crônica no ombro, evoluiu em tamanho para um rumor escandaloso de que ele teria AIDS e finalmente virou um furacão de comentários impossíveis de parar, que o taxavam como homossexual, viciado em drogas e moribundo. Tais rumores acabaram por destruir sua negociação de passe do River Plate para o San Lorenzo, o relegando a um posto oferecido bem dizer por misericórdia pelo time Milionarios da Colômbia, na época muito distante das elites esportivas da América do Sul.
Sob essa ótica, slash fiction sobre gente real, por ser uma fonte de comentários e conceitos tabu que são lançados para massas gigantes, aparenta—ao menos num primeiro momento—um potencial de causar estragos dolorosos em reputações. Pode, segundo alguns, induzir pessoas a pensar que certa pessoa é homossexual quando não é: e aqui vale o velho ditado de “onde há fumaça, há fogo”, com pessoas sendo levadas a imaginar que aquela química poderosa entre atores colegas de cena, músicos de uma banda, ou companheiros de time de esportes retratadas em fics e artes seja “algo mais”, e que isso ante a norma conservadora da sociedade possa vir a ter efeitos nefastos.
E finalmente, que não se ignore: existe um lado sombrio nesse fandom, primeiro revelado pelos ciúmes quase destrutivos que parte dos fãs mantém pelas celebridades que fazem parte de seu “shipping”, não admitindo que existam outras prioridades românticas em suas vidas além do par eleito. É comum haver uma quantidade bastante notável de expressões de ódio gratuito a esposas e namoradas de celebridades na vida real, e dirigidas não por gente que quer se imaginar ao lado de seu ídolo, mas que quer imaginar o ídolo ao lado de outro homem. Essas manifestações podem ir desde meros insultos até ameaças e agressões, dependendo do quanto o fã se sinta “ofendido” pela presença da “destruidora de romances”.
Outro problema é a existência ainda de certa quantidade de ficção slash com pessoas reais feita assumidamente para insultar. Alguns trabalhos e artes são criados não por apoiadores, mas por detratores ou inimigos mesmo, e que podem ir longe nos retratos caricaturais e ridicularizantes de alguma celebridade (onde o tabu de sexo gay é ainda largamente usado como algo depreciativo).
O lado de quem faz:
Mas, se por um lado os autores que se dedicam a ficção com pessoas reais podem ser criticados por todo esse potencial negativo, por outro lado a defesa deles é também mais que bem fundamentada, se ancorando em basicamente quatro pontos importantes.
1º.) NÃO É REAL: Autores de slash de pessoas reais no geral não tem qualquer pretensão de que o que escrevem seja a realidade. E quando dito “geral” pode-se calcular um seguro 98%, com 2% reservados a exceções consideradas problemáticas pelos próprios fandoms. Não há a intenção de mostrar “o que Fulano fez ou faz de verdade”, mas, como disse poeticamente uma autora certa vez “o que sonhei que ele estava fazendo”.
Assim sendo, não há nenhuma intenção de causar algum tipo de implicação na vida de quem é retratado. É sonho, apenas isso: e em sonho o senador da República pode dançar xaxado com lagostas, o ator pode voar, o grupo de cantores pode esconder alienígenas que viram dragões e, sim, o jogador de futebol pode namorar o adversário. Autores de fics slash com pessoas reais não costumam economizar nos avisos sobre o teor imaginário do trabalho—até como meio de se proteger de eventuais ataques de outros fãs mais conservadores da celebridade retratada.
2º.) NÃO FALA SOBRE IMAGEM PRIVADA, SÓ SOBRE O QUE A MÍDIA JÁ MOSTRA: Outro ponto que lembram é que a fanfic vai no máximo cobrir e desenvolver aspectos de uma imagem já compartilhada com o mundo. Não se trata de invadir “a vida privada” da celebridade em questão, fuçar sua lata de lixo, seguir seus filhos ou sua mãe voltando da igreja, mas de dar alguma leitura imaginativa a algum de seus atos públicos registrados na mídia. E que a cada vez menos tem sido fruto da intromissão de “paparazzi”: no mundo da informação rápida, normalmente a própria celebridade vai antes de todo mundo abastecer as redes sociais com farto e saboroso material sobre ela mesma, com direito a momentos mais ou menos espontâneos, mas que a partir dali começam a fazer parte do arsenal de ideias do fandom. Selfies, compartilhamentos, tweets, interações via chat e até momentos de entrevistas formais e meetings (a cada vez mais expostos em caráter integral) vão conscientemente parar na mão de um público que com certeza vai aproveitá-los a seu bel prazer. É o uso de uma vida que se mostra, não a que se esconde, com um ponto a favor de quem explora essas informações para fan works: não há, na maioria das vezes, a proposta de tornar essa leitura de um gesto público em algo oficial ou de significado mais profundo, ao menos não sem que a celebridade admita.
E, como veremos, muitas vezes esses gestos são até mesmo propositais.
3º.) AJUDA NA POPULARIDADE: Uma verdade que tomou corpo de uns anos para cá: ser mostrado como gay ou fazendo algo que seja dito como gay— o que antes era visto como degradante numa sociedade que cobrava aos machos não chorar, assediar todas as fêmeas, cuspir no chão e ser um clone dos personagens de John Wayne na rudeza e na dureza—agora é visto com interesse por uma fatia de público que cresce a cada dia: mulheres, e que cada vez mais podem pagar para consumir pelo estímulo que desejem. E isso tanto é verdade que as próprias celebridades retratadas em fanfiction slash (ou não), muitas vezes se esforçam para jogar um pouquinho mais de gasolina na chama do interesse homoafetivo que já queima: o “bromance”—amizade intensa entre dois homens, que em teoria superaria em importância o interesse desses homens no romance com mulheres—já faz tempo deixou de ser exclusividade dos personagens de telas e papel e ganhou as páginas de tabloides: com gente de carne e osso oferecendo imagens, poses, fatos de trivia e até insinuações mais ou menos sutis de envolvimento afetivo como casal. Mãos dadas, declarações emocionadas, toques aqui e ali, abraços calorosos e até beijinhos tem sido vistos mídia afora em quantidades cada vez maiores.
O resultado, longe de ser negativo tem refletido um efeito benéfico para as pessoas que tem a imagem envolvida nessas sugestões: o público que apoia o “bromance” (e o expande além de amizade em ficção) no geral se revela extremamente protetor das figuras públicas “bromanceadas” e seus ambientes de interação: é dito que a continuidade de shows com largo intervalo (como Sherlock) ou que já passaram da sexta temporada (é o caso de Supernatural) muitas vezes se sustenta no apoio que esse público slasher dá para ter mais interações sugestivas dentro e fora da tela. Em outras áreas, o público slasher de pessoas reais pode mesmo ser a força de sustentação mais constante de carreiras que de outro modo estariam ameaçadas: como acontece com esportistas com performances severamente criticadas ou atores que não conseguem bons papéis na temporada de cinema, mas que assim ainda contam com uma base de fãs leal e devotada.
4º.) É FEITO COMO HOMENAGEM: Em outras eras, uma fanfiction ou fanart retratar alguém como gay ou de qualquer modo menos macho, delicado, fofinho, etc. era visto como mera ofensa ou esculhambação, mas isso mudou. As pessoas que fazem fanfiction slash ou tendendo ao homoafetivo no geral amam de verdade os ídolos retratados ali, e põem muito esforço em fazer da obra algo que se afaste do espírito de zombaria. Já nos tempos em que o romance slash era retratado apenas entre personagens fictícios havia essa preocupação, em tornar o texto ou visual digno ou excitante e seus personagens simpáticos, atraentes e motivadores.
Com pessoas reais, as fanfictions e fanarts slash feitas por esses fãs devotados—no geral a maioria que abastece os acervos atuais—segue a mesma ideia de se fazer dos retratados algo para se admirar, encantar e querer um pedaço para guardar debaixo do travesseiro. Até por um interesse específico: o desejado crescimento do fandom.
Quem faz fics ou artes slash sobre um tema no geral gosta de ter outras fics slash sobre o mesmo tema para ler, ou fanarts para ver, e isso só se consegue caso outros fãs tenham a mesma atitude dedicada. Essas atitudes florescem melhor em meios de admiração do que de ódio: no caso das crack fics para ridicularizar uma personalidade, pode haver o impacto inicial, mas é bem mais raro haver uma expressiva reunião de fandom e culto ao redor por muito tempo. Acaba cansando falar do que não se gosta, ainda que seja para denegrir. O movimento contrário se vê enquanto há o culto de admiração às celebridades (que se gosta), retratadas com carinho (porque se gosta delas), em uma situação que se gosta de ver (no caso, amor gay): o fandom tende a não se dispersar e se unir em torno da produção artística, ao menos durante o tempo em que a exposição da celebridade na mídia seja suficiente para abastecer novas ideias.
E o que as celebridades acham?
Ficção slash de pessoas reais ainda motiva uma notada evasividade por parte de gente famosa em entrevistas: há o compreensível risco de má interpretação do que se diga, com consequências ainda bastante imprevisíveis. No entanto, em meio ao silêncio, algumas personalidades largamente retratadas (e com fidelidade de detalhes) em imagens e textos slash já se pronunciaram sobre essas tantas visões alternativas que muitas vezes desmancham a linha de separação entre personagem e gente real: no fanart, sobretudo há a coisa do personagem ter a aparência do ator, esteja ele com suas roupas de super-herói, com trajes informais ou nu.
Então melhor do que nós falarmos por eles, é deixar aqueles que falam falar por eles mesmos:
“Tem toda essa arte de mim e do Robert? [Downey Jr.](…) Sim, sou eu e o Robert, olhem isso! Tem milhares delas! (…) Sim, adorei, é incrível. Apóio 100%. Sabe o que é isso? É criatividade de fonte livre.”
Mark Ruffalo, Hulk em “Os Vingadores”, entrevista de 2013
“Sabe, é interessante. Eu não conheço totalmente a demografia dos meus fãs. Sei que existe um fenômeno de slash fic que eu na verdade não entendo, e pelo que eu entenda sua maior parte é escrita por mulheres hetero ou lésbicas, e toda aquela alteração de gênero é acachapante. (…)Eu presto atenção sempre que recebo algum elogio, abana meu já hiperventilado ego, então presto atenção.”
Misha Collins, Castiel em “Supernatural”, entrevista originalmente para AfterElton.com, 2011
“Você conhece a regra 34, certo? [regra da internet 34=”se existe, tem pornografia a respeito. Sem exceções”] Aí, em algum momento, não lembro como eu cheguei nisso, eu li uma sentença de uma fanfic de Mythbusters e estava daquele jeito de “Chega! Chega!” e parei. Eu não queria…Eu ia precisar de alvejante cerebral para o que vinha pela frente.”
Adam Savage, de “Mythbusters”, entrevista ao site Dog Prairie, 2013
“Achei minhas proporções corporais bastante elogiosas. Estou sarado, fazendo algo que eu normalmente não faria com meu corpo ou já fiz, envolvendo Watson. Então, sobre essa é o máximo que vou falar, mas está tudo na Web se você quiser achar. Fiquei admirado pelo nível da arte, pessoas passaram horas fazendo elas.”
Benedict Cumberbatch, Sherlock Holmes em “Sherlock”, em entrevista à MTV, 2012
“Eu acho que é um elogio, é…agradavelmente bizarro. Vi imagens e histórias (…) É fantástico, achei brilhante, esse pessoal é tão criativo. É muito legal o fato de que nosso trabalho esteja inspirando outros a fazer suas histórias—por esquisitas que possam ser (…)Sim, tudo boa diversão. Mas quando Daniel [Radcliffe] e eu fizemos ‘aquilo’, definitivamente não tiramos fotos.”
Tom Felton, Draco Malfoy em “Harry Potter” na convenção FanExpo em Toronto, 2011
“Autores de fanfic são contadores de histórias. Merecem ser reconhecidos. A comunidade mainstream precisa aceitar isso.”
Orlando Jones, Capitão Frank Irving em “Sleepy Hollow”, entrevista para The Daily Dot, 2014
Como dá pra ver…varia. E enquanto segue a produção de textos e imagens por tantos fandoms verdadeiramente apaixonados por seus ídolos, defendendo a slash fiction como forma de expressar homenagens a pessoas reais, segue igualmente a reação oposta à prática, dizendo que ela pode ser considerada algo constrangedor e invasivo sobre gente que não é só papel e tinta. Está lançado o debate. Com tantas evidências a favor ou contra, é assunto que promete sempre dar muito pano para manga: enquanto houver o fascínio que a imagem pública de humanos com carne e sangue proporcione e enquanto existir imaginação para levar a simples visão de uma foto ou tweet muito além do alcance.
Eu li suspirando! Adoro bons textos e, mais ainda, informações ótimas, no nível certo, sem serem cansativas. O texto está fenomenal e muito elucidativo. Adorei os links para as entrevistas e o fato da visão ser ampla e não apenas de um lado. Genial! Gosto de debater sobre o assunto pois sou bem focada em slash de pessoas reais (e não estou falando de AU) e gosto muito disso. Adorei ler.
Adorei o texto! muito bom ver a opinião das 'vítimas' XD
Eu não costumo shippar muito pessoas de verdade (complexo 2D fodido), mas às vezes é inevitável, e bem acho que ás celebridades resta apenas aceitar e quem sabe aproveitar. É marketing, afinal.
Enfim, muito divertido esse artigo… imaginei agora o Sarney dançando xaxado com lagostas XD
Eu lembro bem que na minha época de fã da série clássica em Star Trek, eu fazia muito (mas muito mesmo) fanwork relacionado ao meu queridinho William Shatner. Não sei se era porque tudo o que eu produzia (fanfic e artigos) era em inglês e por isso dava aquela sensação ainda maior de distanciamento da realidade, mas eu podia bradar em plenos pulmões o termo meme: I REGRET NOTHING!
Depois passei a levar este assunto de fanfictions slash com pessoas reais numa visão mais séria e cuidadosa quando encontrei sites inteiros dedicados a Bon Jovi slash e outras bandas que marcaram a minha infância. Pela primeira vez na vida passou pela minha cabeça a possibilidade de Jon ou Richie, por exemplo, ter acesso àquelas histórias e questionar sobre estarem ali retratados num romance homossexual. Por algum motivo, me senti como uma espécie de fã desleal, então parei terminantemente de participar de fandoms para pessoas reais.
Fui para fandoms de Saint Seiya e Spartacus, e depois disso imaginei que jamais teria coragem de shippar pessoas de verdade até…
Maldito David Luiz com sua fofura putamente impossível de ignorar!
Ahahahaha mas que texto maravilhoso Deneb! Agora estou pronta para julgar os prós e contras e finalmente me "perdoar" ou me "condenar" de vez por ter voltado a fazer isso!
Muito obrigada e parabéns pelo excelente artigo!