Hoje é dia do evento Dia Nacional do Yaoi e como tema o Blyme escolheu “mangás com ambientação histórica”.

O que mais gosto sobre este tema é a abertura para a possibilidade dos autores trabalharem com elementos do pensamento e o contexto social da época, algumas vezes fazendo um paralelo com os problemas da atualidade.  Claro, poucas são as obras que buscam este tipo de referência, na maior parte do tempo o que se vê é apenas uma apropriação estética superficial, mas há algumas obras que aproveitam muito bem a sua escolha de trabalhar com “o passado”.

Acho que dá pra notar que eu fiquei bastante feliz com a escolha do nosso tema (juro que foi uma votação), pois recentemente desenvolvi uma “ligeira” obsessão pelo século XIX, então resolvi fazer a resenha de uma obra que se passasse neste período. Resolvi também escolher um título bastante peculiar, um quadrinho feito fora do Japão e que é uma opção de compra interessante para quem está querendo começar a ler em formato digital.

Games With Me é uma história com dois capítulos por Tina Anderson e desenhada por Linsley Brito (atualmente ilustrando o webcomic Soul Dice). Este mangá, se me permitem chamá-lo assim, foi publicado em inglês inicialmente apenas em ebook, pois as editoras americanas ficaram “com os dois pés atrás” ao ter conhecimento dos temas polêmicos que permeiam a história. Após muito procurar, as autoras conseguiram a publicação impressa na Alemanha, pela editora The Wild Side. Como não entendo bulhufas de alemão, fiquei com a versão do Kindle mesmo.

Atualização – A Juliana avisou que existe a versão omnibus impressa desde junho de 2012. Pode ser comprada na Amazon ou na Book Depository.

Decidi ler Games With Me por indicação da Jennifer LeBlanc, autora do excelente (e falecido) blog The Yaoi Review e que atualmente é editora da SuBLime, divisão BL da Viz . Na época havia apenas o primeiro volume e por diversas vezes acreditei que jamais leria o final da história: Tina Anderson se “aposentou” do BL e Linsley parecia estar bem atrasada com a arte…

Mas FELIZMENTE eu estava errada e consegui ler o segundo volume no mês passado. A espera se pagou, gostei muito da obra completa.

Então vamos à sinopse e vocês entenderão bem rapidamente o motivo de tanta polêmica.

O ano é 1869 e o doutor George Callahan vive de realizar abortos clandestinos nas prostitutas dos bordéis de Chinatown. Ao buscar informações sobre uma mulher de seu passado, Callahan acaba envolvendo-se sexual e emocionalmente com um prostituto chinês de nome Jun, que é deficiente mental.

Além de vender o corpo e sofrer abusos de seus clientes, Jun é frequentemente assediado por Baxter, um funcionário do bordel que o ama de forma doentia. Parece que já tem drama e situações espinhosas o bastante não é mesmo? Pois este é só o começo… mas, vocês sabem, eu não gosto de dar spoilers, portanto só entenderá o quão longe esta trama chega quem tiver a oportunidade de lê-la.

Tina Anderson teve um cuidado primoroso com a pesquisa histórica – apesar de admitir a licença poética de inserir bordéis masculinos, coisa que não existia na época – expondo algumas das entranhas da “civilizada” era vitoriana. Já Linsley, na minha opinião, é uma excelente artista, que só melhora com o passar do tempo. Seu traço é limpo, ela desenha rapazes muito bonitos e é muito eficiente em mostrar as roupas e objetos da época. Mas certamente o que faz esta história se destacar são os seus personagens.

Callahan é um protagonista maravilhoso, um tipo atormentado por tantos pecados que busca no ópio um alívio temporário para sua consciência. E com isso soma mais uma falha ao rol de defeitos que o fazem tão humano e interessante.

Enquanto Callahan está preso em um passado que não o abandona, Jun está preso em sua mentalidade infantil e seus jogos de criança. Jun é um ser inocente e essa alienação, o fato de estar sempre sorrindo, faz com que as suas condições pareçam ainda mais cruéis.

Retratar um personagem deficiente mental sem que fique parecendo uma caricatura, é um grande mérito para qualquer escritor e desenhista. E não tenho palavras para descrever a ousadia de fazer o mesmo personagem protagonizar cenas de sexo, que embora muito elegantes são no mínimo moralmente questionáveis. Acredito que muitos possam criticar o aspecto “fanservice” destas cenas, mas não acho que isso estrague a composição dos personagens ou o turbilhão emocional de Games.

A despeito de quão “suja” essa ideia pareça, o envolvimento entre os protagonistas é muito tocante, e base para uma história que consegue deixar o leitor mais sensível com um nó na garganta, onde até os momentos felizes são assim, um pouquinho amargos.

Então se você gosta de histórias densas, eu recomendo essa leitura. Mas com um copo de bebida quente e doce ao lado, para suportar a angústia.