Gengoroh Tagame fala de Gay Comics, “Bara” e BL
Tendo em vista as questões que são constantemente levantadas tanto no fandom nacional quanto no fandom gringo e aproveitando que temos um excelente mangá do Gengoroh Tagame publicado aqui no Brasil (O Marido do Meu Irmão – Panini), encontrei esse texto muito importante e oportuno.
Mesmo que você não goste de Gay Comics (“bara”) ou não acompanhe o trabalho de Gengoroh Tagame, acho que é uma entrevista interessantíssima para todos os que apreciam boy’s love e querem saber mais sobre as mídias e autores LGBT+ no Japão e no exterior.
A entrevista a seguir é uma tradução livre e autorizada do post do blog Manga Comics Manga, de Deb Aoki (foi no ano de 2015, continua super atual).
PS: aqui o gênero de mangá que conhecemos mais como “bara” será chamado pelo nome mais correto, Gay Comics ou mangá gay.
TCAF 2015 – Gengoroh Tagame fala de Gay Comics, “Bara,” BL e Scanlations
Em março de 2015, Gengoroh Tagame, artista japonês de Gay Comics, foi o convidado especial do Toronto Comic Arts Festival (Canadá). Essa foi a segunda visita do artista ao TCAF. Intitulado “Gay Comics Art Japan”, o painel teve como destaque Tagame, juntamente com Graham Kolbeins e Anne Ishii (editores/tradutores do livro Massive: Gay Erotic Manga and the Men Who Make It, da Fantagraphics), e Leyla Aker, Vice-Presidente Sênior da VIZ Media.
O resultado foi uma conversa animada sobre as diferenças e as (às vezes) problemáticas relações entre mangás gay e os mangás boy’s love, como ambos os gêneros são percebidos no Japão e no exterior, o impacto das scanlations no trabalho dos criadores de mangá gay e muito mais.
TCAF 2015: GAY COMICS ART JAPAN
ANNE:
Eu vou só apresentar rapidinho os participantes do painel e logo começaremos o nosso bate-papo. Vamos falar sobre a arte dos gay comics e como ela se intersecciona com as diferentes formas de mangá queer.
Meu nome é Anne Ishii, vou moderar o painel e traduzir para Gengoroh Tagame, que está no centro. Tagame é um renomado mestre dos mangás eróticos gays, bem como um ilustrador e modelo de moda, como vocês podem ver aqui [referindo-se ao slide de Tagame fotografado por Leslie Kee para a marca Gap].
Ao lado dele, filmando um documentário para Maysles sobre os mangás gays, está Graham Kolbeins, cineasta, escritor … minha cara metade. Não no sentido jurídico*, mas vocês entenderam … (risos)
*aqui Anne quer dizer que eles não são um casal.
Leyla Aker está no lado esquerdo, toda de preto. Ela é a SVP, perdão, a Vice-Presidente Sênior (caso vocês não conheçam as abreviações da indústria editorial), da VIZ Media, e é a responsável por ótimos mangás Boy’s Love (BL) / yaoi pelo selo SuBLime que todos deveriam adquirir legalmente o máximo possível. Ela é mais conhecida como “turkish delight (manjar turco)” … (risos da plateia)
LEYLA:
Você tinha que mencionar isso, né?
ANNE:
É porque ela é armênia, é por isso que a chamamos assim. (gemidos de desagrado da plateia e dos participantes do painel) Não, ela é turca, ela é turca! Calma! Okay, então vamos falar um pouco sobre quadrinhos queer, gay comics e BL e tudo o mais.
Vamos começar com Graham. Eu acredito que ele vá falar um pouco sobre Gengoroh Tagame e mangás gay em geral.
APRESENTAÇÃO DE GENGOROH TAGAME E DOS GAY COMICS
GRAHAM:
Obrigado Anne. Então, MASSIVE é a minha marca e da Anne, e é focada principalmente em produtos desenvolvidos por artistas gays japoneses e em mangás gay. Mas estamos interessados em trabalhar com outras formas de arte queer: mangá lésbico, transgênero e mangá intersex. Então, há mais por vir.
Mas hoje estamos aqui para falar sobre Gengoroh Tagame, que é nosso convidado de honra e um dos mangakás gays mais conhecidos internacionalmente. Ele foi o primeiro artista de mangá bem-sucedido comercialmente a fazer mangás com temática gay.
No início dos anos 90 ele fez um enorme sucesso, o que o ajudou a lançar a revista G-Men em 1994, junto com outros dois editores da revista gay Badi. Mas antes disso, Tagame já vinha desenhando mangá desde o ensino médio. Isso foi antes das revistas gays publicarem mangá de forma séria, então as únicas opções viáveis para ele eram as revistas BL. Ele enviou seu trabalho para a JUNE, que é uma famosa revista BL da década de 70. Na época ele usava um outro pseudônimo.
Ele começou a usar o pseudônimo Gengoroh Tagame em 1986, quando desenhou seu primeiro mangá para a Bara Komi, a primeira revista dedicada exclusivamente ao mangá gay (de homens gays para homens gays). Ela era um suplemento da revista Barazoku, uma publicação inovadora quando foi lançada em 1971. Foi a primeira revista gay do mercado de massa no Japão. Aproximadamente aos 15 anos em sua história editorial, eles (da Barazoku) começaram a se concentrar mais no mangá.
A Bara Komi foi um momento decisivo para o gênero, mas não até meados dos anos 90, quando a G-Men apareceu. Foi então que a plataforma realmente deu condições para que o mangá gay florescesse. A G-Men ajudou a lançar as carreiras de muitos artistas incríveis e você pode ver alguns desses artistas na antologia que lançamos pela Fantagraphics há alguns meses, chamada Massive.
Gengoroh Tagame publicou mais de 26 mangás em japonês e mais de 50 em cinco idiomas diferentes. Além de mangaká, ele é romancista e historiador. Ele é o escritor de uma série de livros chamada Gay Erotic Art in Japan, por isso se empenha seriamente em analisar os aspectos históricos desse tipo de trabalho.
Este é o livro que acabei de mencionar, Massive – que contém trechos de trabalhos de Gengoroh Tagame e de Jiraiya, que fez a arte da capa, e sete outros grandes artistas que têm impactado a cena do gay comics nas últimas duas décadas.
Esta é a história que selecionamos para o capítulo de Tagame no Massive, chamada Do You Remember South Island POW Camp. O mangá inteiro tem 700 páginas e foi publicada ao longo de mais de 60 edições da revista G-Men. É uma ficção histórica ambientada em um campo de prisioneiros de guerra americano logo após a guerra em 1945, e meio que analisa os desequilíbrios de poder da guerra através do filtro do BDSM. É um trabalho realmente interessante que espero que seja publicado na íntegra em inglês algum dia.
Gengoroh Tagame também teve algumas coleções independentes lançadas pela editora alemã Bruno Gmuender, traduzido por Anne Ishii. O mais recente é o Fisherman’s Lodge. É um trabalho curto ou médio para Tagame, 112 páginas. É uma história muito tranquila, meditativa e íntima, ambientada num chalé nas montanhas durante o inverno. Este homem mais novo vai lá para trabalhar com um pescador mais velho e eles começam um relacionamento. É muito terno, mesmo que também tenha algum sexo violento. (o público ri)
Gunji e Endless Game são os outros livros que a Bruno Gmunder lançou com os trabalhos do Tagame.
Seu mangá mais recente, publicado na revista Monthly Action, é O Marido do Meu Irmão (Ototo no Otto). O primeiro volume deste trabalho será lançado ainda este mês em japonês, e é notável porque é o primeiro mangá que ele criou para uma revista mainstream de mangá, não necessariamente para o público gay, mas para o público em geral. Tudo começou em novembro de 2014 e tem sido um enorme sucesso. (NOTA: Menos de um mês após o seu lançamento, Ototo no Otto Vol. 1 teve sua quarta impressão no Japão)
Estas são algumas imagens de vários momentos da história. É sobre um homem hetero cujo irmão gêmeo se mudou para o Canadá e se casou com outro homem. Seu irmão falece, então o marido canadense vem ao Japão fazer uma visita. A obra explora questões de identidade de maneiras realmente interessantes e fala sobre o que significa ser gay na sociedade japonesa.
Esse personagem, Mike, o marido canadense, vem visitá-lo e há um pouco de intercâmbio cultural – ele apresenta a culinária tradicional canadense para a família japonesa. Ele faz um Kraft Dinner para eles. (o público ri, lembrem-se que estão no Canadá). Então, tem uns momentos realmente simpáticos e divertidos…
ANNE:
Esse é um prato indígena ou…?
GRAHAM:
É o prato nacional do Canadá pelo que ouvi dizer…
HOMEM NA PLATEIA:
…O canadense é ruivo?
ANNE:
Boa pergunta!
GENGOROH:
Não ruivo, mas tem cabelo castanho claro, eu acho.
GRAHAM:
A filhinha do protagonista, que é muito corajosa e resiliente, ela se apega ao canadense e é uma história muito boa.
Mas, você sabe, nem tudo pode ser tão doce, então … (a platéia ri quando a capa de Cretian Cow aparece na tela)
Nossa mais recente tradução. Esta é uma obra que a MASSIVE publicou – deveria estar aqui para o TCAF, mas houve um contratempo – então estamos fazendo pré-vendas – chama-se Cretian Cow (A Vaca de Creta). É uma história baseada na mitologia grega, a história de Teseu e o Minotauro.
ANNE:
O Minotauro também é canadense! (a plateia ri)
HOMEM NA PLATEIA:
E talvez ruivo!
ANNE:
E também é ruivo.
GRAHAM:
Então, ao contrário do que você se lembra dos estudos sobre a antiguidade clássica, o Minotauro leva Teseu como refém e o escraviza sexualmente. Não vou dar muitos spoilers, mas é uma história incrível e surpreendente, todas as páginas têm uma surpresa. Inclui M-PREG (gravidez masculina), então é super divertido! (o público ri)
Além da publicação de mangá e livros, a MASSIVE também se engajou na confecção de roupas, e fizemos algumas camisetas diferentes com Gengoroh Tagame.
A próxima coisa que faremos é essa série de regatas projetadas por Gengoroh Tagame, Jiraiya (que saiu para uma turnê nos EUA no mês passado) e Seizo Ebisubashi, todos tocando no tema “Massive” (maciço). Cada um deles desenhou ilustrações originais interpretando essa palavra.
Enfim, isso é apenas um fragmento da estimada história de Gengoroh Tagame e sua obra, mas só queria mostrar algumas das coisas que ele tem feito ultimamente.
ANNE:
Talvez a Leyla devesse tomar a palavra agora…
LEYLA:
Por que não continuamos nos trilhos do assunto Tagame?
ANNE:
Okay, tudo bem!
GENGOROH:
Olá pessoal, eu sou Gengoroh Tagame e quase tudo sobre mim já foi dito, então não há mais nada a dizer agora … (a platéia ri)
ANNE:
E o trem descarrilhou.
LEYLA:
OK. O trem está agora … então, apenas para reiterar o que Anne disse, a razão pela qual estou sentada aqui – o que eu estava me perguntando no caminho para cá era algo do tipo: “Por que estou neste painel?” mas…
ANNE:
Você ainda está se perguntando?
LEYLA:
Eu estou questionando. Mas a razão pela qual estou neste painel é que um dos selos da VIZ Media é chamado SuBLime, que é dedicado ao boy’s love e à publicação de mangás yaoi. Alguém aqui não sabe o que é isso? (nenhuma mão é levantada na platéia) Ok, muito bom. Só queria conferir.
Esse projeto deslanchou há uns três, quatro anos? Foi lançado porque, anos atrás, quando o primeiro boom de mangá estava acontecendo nos Estados Unidos, os primeiros mangás boy’s love apareceram – eu acho que eram da Central Park Media. Era Embracing Love (Haru wo Daiteita), de Nitta Youka, e todo esse tipo de coisa. (NOTA: Agora Embracing Love está disponível em inglês no SuBLime Manga)
A Tokyopop lançou seu próprio selo BL (BLU Manga). Havia um monte de editoras menores e publicações de fãs como a Drama Queen que também começaram a trabalhar com BL. O declínio do mangá se seguiu ao boom do mangá, e quase todos esses empreendimentos fecharam as portas.
Então, alguns anos depois, a Libre, que é a maior editora de boy’s love (mangá) no Japão, nos procurou e disse: ‘Ei, vocês não estariam interessados em trabalhar junto com a gente para trazer de volta esse material para o público que fala inglês?’ dissemos que sim. Então foi assim que começou.
No momento, temos … não tenho certeza do número total exato de volumes, mas se você acessar o SublimeManga.com, a maior parte do que publicamos está disponível em formato digital. Também tornamos os e-books livres de DRM e disponíveis para download, pois isso parecia ser muito importante para esse público. E também temos os impressos tradicionais.
BOY’S LOVE E GAY MANGA, UM RELACIONAMENTO PROBLEMÁTICO
LEYLA:
A razão pela qual eu estava me perguntando, a razão pela qual estou neste painel é por causa da relação problemática entre o boy’s love e o mangá gay.
Sabe, claramente é um problema, é um assunto que eu acho que qualquer pessoa envolvida com essa área está preocupada. Mas especialmente NÃO no Japão, onde essas linhas são muito, muito claramente delimitada e não há muita mistura* – embora eu ache que Tagame-san poderia realmente me dizer se isso é ou não é verdade.
* Leyla quer dizer que acha as demografias japonesas mais bem definidas que as do ocidente.
Aqui parece que essas fronteiras são muito mais fluidas. Uma das coisas interessantes que saíram do selo da SuBLime é que, porque estamos publicando essas coisas pessoalmente, diretamente, digitalmente – temos acesso a muitos dados do consumidor. Você sabe, é tudo confidencial, não podemos ver as informações pessoais de ninguém, apenas o comportamento do comprador. Mas uma das coisas que realmente me surpreendeu foi que sempre acreditei que uns 95% do público de mangá BL era composto de mulheres. E não era!
O que descobrimos foi … dependendo do mangá em questão, até 50% do envolvimento de nossos leitores era do sexo masculino. Em média, são cerca de 15 a 20%, e isso para mim foi realmente surpreendente, porque eu não teria imaginado isso.
Também é muito legal porque significa que mesmo as definições pré-concebidas e barreiras na minha cabeça como profissional (que deveria saber melhor que isso)… mesmo essas barreiras são destruídas pelo que as pessoas gostam, o que as excita e o que leem.
A outra curiosidade que emergiu disso é que o maior envolvimento dos leitores do sexo masculino foram com os títulos mais românticos. Não eram os títulos de sexo hardcore, então eu não sei. Isso é pura especulação, mas talvez essa seja uma área que não seja tão bem servida na literatura gay.
ANNE (PARA GENGOROH TAGAME):
Então, a seguir, vou só juntar o que você estava dizendo em uma pergunta e tradução, mas acho que você deveria falar antes sobre qual você imagina que seja a diferença entre os leitores nos EUA e do Japão, em termos de como decidimos traçar limites entre o que é considerado BL e o que é considerado um mangá gay.
GENGOROH:
Quando olho a arte gay nos quadrinhos como crítico, fico um tanto aflito com essa divisão exatamente porque a maneira simplista de dividi-la é que BL representa mais romance, narrativas elaboradas, tipos de corpos mais magros, personagens mais efeminados. E então o chamado “mangá gay” seria apenas mais bombado, com caras grandes e mais sexo hardcore, etc.
Mas o que acontece quando o criador é uma mulher fazendo um trabalho mais hardcore? Aí é considerado gay? É BL só porque ela é mulher? É sobre o público ou sobre os criadores? Essas são coisas nas quais eu definitivamente penso muito como crítico.
Além disso, voltando ao gênero dos autores, isso é problemático também porque às vezes os autores de BL – e estou falando a partir de um conhecimento pessoal de alguns desses autores – podem ser biologicamente femininos ou se identificar socialmente como mulheres heterossexuais, mas na verdade, às vezes, são lésbicas ou trans.
E, às vezes, é o caso de uma mulher que desenha um tipo de personagem mais musculoso e usa pseudônimos masculinos para publicação na mídia gay. O que também é muito… não problemático, mas levanta várias questões, como começamos a categorizar?
Existem vários relatos engraçados de editores de revistas gays que recebem esses trabalhos, veem um pseudônimo masculino e presumem que são homens, escrevem para (o artista), querem conhecer, quando se encontram, é aquele choque! (risos)
ANNE:
Tagame-sensei não está especificando se isso é um choque ruim ou um choque bom, mas é claro, o fato de haver uma diferença entre expectativa e realidade é realmente interessante …
YAOI, BL, MANGÁ GAY, BARA: OS RÓTULOS IMPORTAM?
GENGOROH:
Mencionei na antologia MASSIVE que eu pessoalmente odeio o rótulo “bara” para quadrinhos gays, porque é um termo impreciso e uma representação falsa, mas estou pensando agora com base em todos os problemas que acabei de descrever, que “bara” poderia de fato ser um termo muito conveniente para descrever uma situação ou o estilo.
A razão de eu odiar o rótulo “mangá bara” é porque a única coisa que eu queria no século 21 era que as pessoas parassem de se apropriar dessa palavra horrível em associação com gays. Não quero que exista nenhum vínculo entre esse termo depreciativo e a comunidade gay. Mas, ao usá-lo como uma maneira de descrever apenas o conteúdo, torna-se evidente que é muito conveniente falar sobre arte relacionada a personagens que são musculosos, grandes e peludos, em vez de um tema mais feminino de figuras românticas e esbeltas. Essa é uma descrição que eu posso apreciar. Acho que agora, quanto mais penso nisso – “bara” poderia potencialmente emancipar o conteúdo de seus criadores.
Então, eu não sei se é o mesmo nos EUA, mas se você vê propagandas ou capas de revistas no Japão com caras grandes, logo imagina que parece ser algo gay. * No entanto, ninguém olha para a Playboy e pensa (que a revista) parece algo lésbico! (risos)
*Aqui Tagame-sensei está dizendo que no Japão o tipo físico grande e musculoso ou peludo, mesmo fora dos mangás, é imediatamente associado a algo gay.
Associar o criador com sua arte é uma espécie de falso positivo porque, apenas porque o … autor é um homem gay não significa necessariamente que o homem que ele está representando tem que ser gay. Além disso, quando você está olhando os trabalhos deles, não é que eles estejam obrigatoriamente fazendo algo gay. Estamos assumindo que, porque o criador é um homem gay, a arte tem que ser gay, o que é um pouco problemático.
ANNE:
Concordo. Às vezes, na confecção de nossas roupas, por exemplo, existe a ideia de que elas são muito maliciosas/atrevidas. Na prática é só um desenho de um homem sem camisa, o que por si só não é problemático, mas há essa ideia de que é “ousada” porque é “sugestiva”. Só que isso é tudo coisa da nossa cabeça.
Ou uma pergunta parecida, que carrega a essa ideia de jargão e nomenclatura com a qual tenho certeza de que você [Leyla] lida muito: o que você pensa como editora sobre essas nomenclaturas? Você que tem mais acesso ao ponto de vista dos autores: como eles querem ser descritos em relação ao seu trabalho? E então, vamos ver como o público pode criar seu próprio léxico.
LEYLA:
Tem muita coisa aí. Tem muita coisa aí …
ANNE:
Em poucos parágrafos, se possível. (risos)
LEYLA:
Sim, certo, certo, vou me ater a uma história.
Então, cerca de dois anos atrás, havia dois grandes autores que vão ficar sem nome, que realmente queríamos trazer para a SuBLime e que os fãs pediam o tempo todo. Não conseguimos publicar nenhum deles, porque eles se opunham a serem colocados na categoria, sob um selo de BL. Eles não queriam que seu trabalho fosse rotulado assim. Aliás, eles eram autores de BL.
Mas eu tenho que respeitar, porque a intenção do autor é algo que nunca pode ser deixado de lado, independentemente de como o público entende sua obra. E eu concordo com eles, sabe. Por mim não haveria selos ou categorias. Seriam apenas livros.
A nomenclatura da qual estamos falando não existe para o benefício das próprias obras, mas existe para vendas. No final das contas, é para isso que elas servem. Quando você entra em uma livraria, quando entra em uma loja online, deve haver um modo de categorizar tudo para maximizar as vendas. É assim que o mundo funciona. Entendemos isso, entendemos, mas é lamentável, porque como essas categorias existem há tanto tempo, não tem jeito delas não acabarem moldando sua percepção do conteúdo, infelizmente. Mas também não consigo enxergar uma forma de ir além disso.
Ontem, em um dos painéis em que participei com Deb Aoki, quando falamos sobre mangás femininos para bibliotecas, toda a questão dos… gêneros das obras foi questionada e, em particular, a diferença entre o que eles significam no Japão e o que eles significam fora do Japão.
Então com isso voltamos a uma das coisas de que falamos anteriormente, é que as categorizações que podem existir na mente do autor no Japão não são necessariamente como elas são codificadas para as expectativas do público aqui. Então, isso adiciona uma outra camada de complexidade à discussão.
E no final das contas, se eu acho que esses rótulos são problemáticos? Se acho que eles são bons para as obras? Sim e não. Se eu acho que existe uma alternativa realmente viável para eliminar os rótulos no presente momento? Eu não vejo uma alternativa, mas se alguém tiver alguma ideia me avise, eu ficaria feliz em pensar sobre o assunto.
MANGÁ GAY, A INTERNET E AS SCANLATIONS
GENGOROH:
Gostaria de saber se essas categorias não foram exacerbadas pela disseminação da Internet.
LEYLA:
Ah, sim, com certeza.
O que aconteceu com as scanlations e fansubs e tudo mais na última década é ótimo, pois ampliou exponencialmente o público para esse conteúdo. Também é ruim porque, como você provavelmente sabe, Internet e pensamento racional, eles realmente não se misturam muito bem. (risos)
Então, foi realmente fascinante assistir nos últimos anos o endurecimento da percepção desse conteúdo na Internet, sendo feito pelos fãs que dizem que estão tentando defendê-lo. E é auto-reforçador. Todos vocês já viram exemplos da “máquina de indignação da Internet” em ação e foi interessante assistir a essas conversas. De certa forma, o fandom também está endurecendo suas próprias percepções do que é e do que não é apropriado, o que também é problemático.
GENGOROH:
Sim, eu concordo. Existe uma grande contradição na Internet. Por um lado, realmente apoia a comunidade e, do outro lado, nega-a completamente. Eu sei que pessoalmente tem sido um problema. Vi uma influência direta da disseminação de conteúdo on-line, por exemplo, na redução da venda de produtos impressos.
Para mim, acho que um dos maiores problemas é que como vocês sabem, meu trabalho não é muito “seguro” para a Internet. Portanto, se você for ao meu site, poderá ter visto que existe uma página de aviso e, dentro do site, há mais um estágio de consentimento para as coisas realmente pesadas.
No caso de escrever para revistas, sou muito deliberado sobre o meu público. Eu tenho uma ideia muito precisa de quem vai se interessar por isso e escrevo de acordo.
Então, se eu estou escrevendo para uma revista que tem uma inclinação para o lado BL e sei que vou ter muitas leitoras por exemplo, o material será mais romântico. Por fora talvez haja xixi, mas definitivamente não cocô! (o público ri)
É claro que o inverso seria se eu estivesse escrevendo para, digamos, uma revista BDSM gay, sabendo quem é seu público, então são agulhas, cortes e castrações e espancamento e …
LEYLA:
Só as coisas boas. (o público ri)
GENGOROH:
Portanto, na era da impressão, quando ainda estávamos imprimindo livros e revistas, era fácil determinar onde (meu conteúdo estava sendo comprado e lido). Se fosse um livro hardcore de BDSM gay, eu também poderia aumentar o preço e atribuir um valor “premium” a ele, para que ninguém pudesse comprá-lo acidentalmente apenas por curiosidade, colocando-o além das mãos dos incautos.
O material BL é barato. Seria como se um mangá BL custasse 600 ienes (USD $6) e coisas de BDSM custariam mais de 2.000 ienes (USD $20). Isso remonta à coisa toda da categoria, mas suponho que parte dela seja perpetuada pelas vendas, com certeza. A “máquina de vendas” existe, e também existe uma espécie de “máquina de rotular” autoperpetuada, criada pelos leitores, que estão desesperados para delinear e criar seu próprio nicho.
É muito importante que os leitores tenham identidades realmente autênticas e específicas. Mas … eu me pergunto o porquê. Por que você acha que isso se tornou um problema maior? Afinal essa é uma pergunta que surge quase toda vez que você fala sobre quadrinhos queer hoje em dia.
LEYLA:
Eu não sei. Mas tenho algumas suspeitas, e uma delas é que … se você é um gay lendo gay comics ou uma mulher hetero lendo gay comics, ou uma mulher hetero lendo mangá BL ou um gay lendo mangá BL, o que você está fazendo é que você está procurando alternativas para a construção homogênea da sexualidade representada na mídia mainstream.
Se você é uma pessoa que está buscando esse tipo de conteúdo, a versão da mídia mainstream claramente não está funcionando para você. Não apenas a versão da mídia mainstream não atende a você, mas também tenta apagar os seus desejos ativamente. Eu acho que a maioria das pessoas tende a ter uma experiência como esta quando curte esse conteúdo. Então eu acho que é parcialmente quase uma reação contra isso.
Por se tratar de uma questão crucial para a identidade de uma pessoa, quando você encontra esse tipo de conteúdo que fala sobre os seus desejos e experiências, torna-se muito importante que a representação meio que acerte a mão ao falar dessa identidade. Então é isso que acho que leva a esse tipo de categorização autoimposta.
Como editor, é difícil se envolver, porque você sabe que é obviamente uma questão muito, muito crucial. Mas, ao mesmo tempo, você está limitado nas formas de responder a essa questão, porque ela não pode ser respondida.
Se são tão velhos quanto eu, vão se lembrar daqueles livros personalizados que você podia encomendar, onde o protagonista tinha o seu nome. Se pudéssemos, criaríamos conteúdo apenas para você, para o seu desejo particular, mas não podemos fazer isso.
Então, por esse lado, eu sempre espero que as pessoas continuem com a mente aberta o suficiente para encontrar algo de que gostem em qualquer título. O que eu odeio ver é a reação negativa imediata de “ok”, isso não representa exatamente a minha experiência e, portanto, é inválido. É difícil, essas são questões tremendamente complexas.
GRAHAM:
Eu acho que isso também explica parte da razão pela qual as comunidades baseadas na Internet que abraçaram essas obras e fazem scanlations ou distribuem o mangá de maneiras não autorizadas agem de forma tão apaixonada pelo BL. Eles veem algo que reflete parte de sua identidade e que não faz parte da cultura convencional. Eles sentem um tremendo senso de propriedade sobre isso. Por ser tão raro encontrar algo que fale com eles, eles querem proteger as imagens e distribuí-las a outras pessoas com ideias semelhantes, mas, infelizmente, o artista nem sempre entra na equação, e isso é problemático. Mas acho que a paixão e o desejo de colocar rótulos nas coisas decorrem do fato de que tão poucos produtos culturais, especialmente nos quadrinhos tradicionais, falam da complexidade da identidade sexual das pessoas.
LEYLA:
Só para esclarecer isso, quando falamos especialmente do fandom online, a dissecação do conteúdo se torna quase talmúdica. Especialmente o que vemos nas mídias sociais é que existem esses elaborados debates sobre categorização e nomes entre fãs ocidentais do que é gay: o que é “shounen ai?” O que é “yaoi?” Quero dizer, os artistas nem sabem quais são essas categorias, por isso é realmente interessante ver esse tipo de dissecação minuciosa acontecendo.
GENGOROH:
Portanto, para voltar aos problemas do acesso total às obras on-line, era possível controlar muitas dessas categorias na mídia impressa usando isenções de responsabilidade e avisos de controle parental, isto é para você, isso não é para você, uma classificação etária bem clara.
Essas coisas não existem na comunidade de scanlation, uma criança de dez anos de idade pode estar lendo meu trabalho, e isso me deixa extremamente nervoso. Não consigo deixar de pensar nisso, talvez não devesse levar as coisas a tal extremo. Na verdade, essa questão inibe minha liberdade artística nesse sentido, porque eu não sou mais capaz de ir ao extremo se estou me preocupando constantemente com uma criança de dez anos pegando meu trabalho on-line.
É muito mais simples que isso. Se você não gosta de filmes de terror, não vá ao cinema assistir. Exceto que agora, porque as obras são de graça, as pessoas podem assistir a filmes de terror apenas para rir, algo do tipo “Isso é tão hardcore e ridículo”. Isso se torna um problema porque é uma violação da minha liberdade de expressão se alguém achar que é uma piada.
É irresponsável que a comunidade de scanlation não consiga colocar esse tipo de barreira para garantir que as pessoas leiam as obras da forma apropriada, especialmente para impedir que o jovem errado* pegue essas obras para ler ou algo do tipo.
*Aqui ele quer dizer uma pessoa que não tenha idade ou maturidade para os temas das obras.
E as coisas que os fãs hetero da internet querem ou procuram são aquelas histórias extremas, justamente porque quanto mais extrema é, mais divertida eles acham que é (pelas razões erradas). Eu estou tentando fazer representações de homens gays que são mais sobre sua rudeza ou masculinidade e acaba sendo, por exemplo, como Cretian Cow se tornando super popular entre os heteros mais “aventureiros”.
Às vezes, meu trabalho mais agressivo é transformado em um meme da internet como uma espécie de … “Two Girls, One Cup”, sabe?
ANNE:
Sim, sim…
GENGOROH:
Acontecer algo assim com um trabalho meu é… a coisa mais irritante.
P&R: MANGAKÁS QUE NÃO GOSTAM DE FOTOS E O MARIDO DO MEU IRMÃO
ANNE:
Falando nisso … como ainda temos mais dez minutos, vamos responder algumas perguntas da plateia.
HOMEM NA PLATEIA:
Na antologia MASSIVE, notei que Gengoroh é um dos poucos que têm uma foto com o rosto (visível). Fiquei me perguntando se você poderia comentar sobre isso. O que significa ser um artista de mangá gay no Japão quando há esse tipo de … tabu?
GENGOROH:
Existem dois motivos para isso, eu acho. Um é que esses artistas não saíram do armário publicamente. O outro é que eles podem ter se assumido, mas não querem misturar suas vidas como mangakás e (suas) vidas pessoais, eles não querem que as duas coisas se… confundam.
LEYLA:
Eu queria pontuar que os mangakás em geral não costumam mostrar seus rostos.
ANNE:
Sim. Mesmo os hétero…
LEYLA:
A razão para isso é que no Japão há uma preocupação com a imagem pública muito diferente daqui. Aqui, os artistas estão tentando mostrar seus rostos em todos os lugares, mas lá … Aya Kanno (criadora de Otomen), que é uma de nossas autoras e que agora há pouco participou de um painel, expressou uma opinião que muitos mangakás têm e que também meio que tem a ver com as coisas que estávamos discutindo: ela não quer que sua identidade esteja ligada às suas obras. Ela quer que seus trabalhos existam apenas por eles mesmos, e esse é um ponto de vista que muitos mangakás também compartilham.
ANNE:
Sim, isso é verdade.
GRAHAM:
Além disso, não há salvaguardas no local de trabalho, não existem leis que protegem as pessoas LGBT+ no Japão. Muitos mangakás em MASSIVE têm um outro emprego e podem não querer que seus patrões saibam o que eles escrevem.
(OUTRO) HOMEM NA PLATEIA:
Nós não entramos muito da parte do historiador, mas eu fiquei curioso. Você acha que é mais fácil agora – eu não sei o quanto disso pode ser uma entrevista em primeira pessoa – mas é mais fácil as pessoas se abrirem hoje em comparação ao que poderia ter sido no passado ou é mais difícil para algumas pessoas que você conhece e que não querem falar sobre esse tipo de coisa? Como isso afeta seu trabalho como historiador?
GENGOROH:
É provavelmente um pouco mais fácil agora apenas por causa das tecnologias de comunicação. Às vezes, no passado, eu literalmente não conseguia encontrar informações de contato de artistas. Agora, com Internet, Twitter, mensagens de texto … é um pouco mais fácil encontrar pessoas.
(MAIS OUTRO) HOMEM NA PLATEIA:
Eu só quero perguntar a ele sobre seu trabalho mais recente, O Marido do Meu Irmão. O que significa para ele publicar uma narrativa gay em uma revista convencional? Que tipo de mensagem ele está tentando transmitir para os leitores?
GENGOROH:
Acima de tudo, o que eu quero que aconteça com O Marido do Meu Irmão é que leitores hétero entendam que a vida social gay japonesa é bastante normal. Muitos japoneses heterossexuais provavelmente não sabem que conhecem homens gays, ou nunca conheceram uma pessoa gay e dizem que nunca viram uma, ou eles não sabem como são as pessoas gays. Para eles (conhecer uma pessoa gay) é como encontrar um panda na natureza. (risos)
Portanto, essa é só uma maneira de torná-lo mais disponível e acessível. Na história, trata-se de um cara cujo irmão é gay. Eu fiz dessa forma para que o leitor se conecte emocional e diretamente com um personagem, o experimente e se identifique com o que seria realmente conhecer pessoas gays.
Para o público gay, quero que eles vejam que sou obviamente um homossexual assumido. Todo mundo sabe que sou gay e faço quadrinhos como artista gay. Eu quero que os gays, especialmente os jovens gays, vejam que é possível ser publicado em uma revista hétero e convencional, que se assumam completamente e sem medo. Eu quero que eles ganhem um pouco de coragem com isso.
Esta capa do (primeiro volume de Ototo no Otto) também é, na verdade, a capa da revista em que foi publicada, na época da publicação. Você pode notar que o marido canadense está vestindo uma camisa com um triângulo rosa. Fiz isso deliberadamente como uma espécie de experimento, apenas vendo o quanto eu poderia me safar, tornando-o mais imediatamente gay de forma visual para qualquer pessoa que pegasse a revista. Eu acho que essa deve ser a primeira revista japonesa de mangá do mercado geral com um símbolo gay explícito na capa!
Então, no dia em que este mangá for lançado (no Japão), o próximo capítulo da história será publicado na mesma revista, e minha ilustração para a capa da revista (Action Monthly) exibirá uma bandeira do arco-íris.
É uma espécie de experimento ver quanto eu poderia me safar, mas também o poder desses símbolos e ver como as comunidades podem meio que se cruzar. Estou me divertindo com isso.
Acabou o nosso tempo, mas estaremos em nosso estande, ao lado da Fantagraphics.
LEYLA:
Vocês podem procurar nossos produtos em qualquer um dos bons revendedores aqui. Todos os nossos produtos são vendidos também através do site.
ANNE:
Okay. Confiram na SuBLime ponto com…
LEYLA:
Sublime manga ponto com, não é a banda…
ANNE:
Ops, desculpe.
(aplausos ao final do painel)
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