Kiraide Isasete
Aviso/TW: discussões sobre estupro e assédio
Aviso²: Spoilers do mangá inteiro
Classificação: 🍋🍋🍋
Se me perguntarem, eu acredito que o surgimento do Omegaverse é uma forma de revisitar certos clichês comuns do romance que nos dias de hoje não tem mais o mesmo peso de antes ou não fazem mais sentido.
Ao contrário de romances de época, se apaixonar por alguém casado ou que está noivado não é sinônimo de um romance impossível que nunca será atingido (já que as pessoas podem se divorciar hoje). Graças aos avanços do movimento LGBT, um romance entre pessoas do mesmo gênero não é uma “tragédia” ou um “tabu” igual era visto em histórias do século passado. Diferenças de classe social também não tem o tom absolutista que existia em romances antigos. Não estou dizendo que não existem dificuldades nesses tipos de relacionamento, nem que isso não possa ser trabalhado na ficção, mas que eles não possuem o mesmo tom absoluto de romances populares feitos em outras épocas.
E é aí que o Omegaverse entra na roda. Como ele surgiu no meio das fanfics ocidentais, ele é um modelo narrativo fácil de ser utilizado e já conhecido, que permite explorar muito desses clichês – relacionamentos que não podem ser desfeitos, romances tabus, diferenças de classe e uma sociedade dividida em castas, etc – sem a necessidade de que o autor construa um universo próprio para justificar o uso deles. É parecido com um jogo de RPG, onde já existe regras pré-determinadas, mas o jogador é livre para interpretá-las da forma que for mais conveniente para ele.
Pessoalmente, eu não gosto quando muito do uso do omegaverse como ferramenta de comentário político sobre questões sociais do mundo real. O determinismo biológico do omegaverse atrapalha grande parte das crítica e debates que poderiam ser entendidos como construções sociais ou “só preconceito” em uma história. Por exemplo, não dá pra usar a carta do “Alphas não são só seres controlados por instintos e estupradores em potencial e achar isso é só preconceito” quando é um fato dentro daquele universo de que eles vão ter que lutar contra o instinto de literalmente estuprar uma pessoa ômega se estiver no cio.
Não quer dizer que isso nunca pode ser trabalhado de uma forma interessante, mas, pelo que eu já li desse subgênero até hoje, grande parte das histórias soam muito vazias nesse aspecto. Criam um debate superficial sobre como funciona a opressão estrutural de um grupo social e isso tendem a deixar um gosto amargo na boca.
Sendo assim, quando olho para as fanfics e mangás BL que usam do omegaverse, eu vejo as autoras seguindo por um desses dois caminhos:
- Usam o determinismo biológico do Omegaverse como uma desculpa fácil para fazer quadrinhos focado no sexo ou um drama digno de novelas mexicanas.
- Usam o formato do universo do omegaverse para comentar sobre aspecto sociais dele, fazendo uma forma de metáfora da luta por direitos humanos de uma minoria fictícia. Muitas vezes são história que questionam e confrontam os aspectos absolutistas da dinâmica Alpha/Beta/Omega.
O problema principal de Kiraide Isasete (2018), o mangá criado de Hijiki, é de que ele tenta ser do segundo tipo, mas na verdade é do primeiro tipo.
O mundo de Kiraide Isasete é cruel com ômegas. Koga Naoto foi estuprado no ensino médio e, devido ao trauma, passou a odiar alphas. Naoto deu a luz a Shizuku e decidiu criar a filha sozinho, que tornou-se a força e o centro de sua vida. Ele ouve fofocas em tom de pena pelas costas dele toda vez que vai dar tchau antes da filha ir para a escola. Não consegue arranjar um emprego por ser ômega – já que empregadores não querem correr o risco de ter que lidar com um cio repentino – e parece que remédios não fazem muito efeito para controlar os feromônios dele.
A situação é tão difícil que ele só consegue um emprego como zelador de uma escola e só porque o antigo zelador tem uma esposa que é ômega e tomou conhecimento da situação dele. Não bastasse isso, logo no primeiro dia de trabalho ele encontra justo com o Tsuchiya Hazuki, um estudante alpha que diz que ele é a sua alma gêmea. Ele foge do menino no horário de trabalho e acaba se escondendo em um armazém, onde um outro estudante alpha aproveita a chance para tentar estuprá-lo.
Se somente ele não fosse um ômega…
Ele não teria medo de ser estuprado.
Ele não deixaria a filha dele preocupado.
Ele poderia arranjar um bom emprego.
Ele não odiaria alphas.
Ele não seria motivo de preocupação para a mãe dele.
Ele poderia fazer a filha dele ser feliz.
Todas as tentativas dele de ser feliz não seriam em vão.
Peraí.
Isso tudo já rola e a história está no segundo capítulo. Isso não está um pouco exagerado não?
E é aí que começa o problema mais crítico desse mangá. O foco de todos os problemas da vida do protagonista, que são muitos, no fato de que ele é ômega soa como uma desculpa esfarrapada para nos deixar COM PENA do Naoto. Não importa se outros personagens da história dizem o contrário, ou de que ele é uma pessoa forte, ou de que é errado julgar as pessoas só por serem ômegas, porque tudo isso é jogado por terra quando o quadrinho faz questão de nos lembrar a cada três páginas de como tudo de ruim que ele sofre na vida vem do fato de que ele é um ômega, chega a ser irritante. Sem falar de que mostram várias vezes trechos do estupro que ele sofreu no ensino médio, como se fizesse questão de mostrar as consequências de nascer ômega nesse mundo.
Cada novo fato trágico que aprendemos sobre a vida do protagonista dá a sensação de como se o mangá estivesse perguntando “E agora? Tá com pena dele agora? Olha a vida sofrida dele, não é uma pena?”
Não adianta muito os personagens falarem que ele pode ser muito mais do que “só” um ômega, quando a história não trata ele assim, e no fim do dia ele é sempre salvo pelo Alpha que é quatro anos mais novo que ele e ainda está no ensino médio.
Aliás, falando sobre o alpha… Hazuki é um personagem que parece até ser interessante, porém a justificativa de ver o Naoto como “alma gêmea” é vazia e o mangá não se dá ao trabalho de se desenvolver o casal de maneira convincente. O seme finge ser um beta porque despreza sua natureza alpha, por perceber que as pessoas admiram mais ele só por causa disso.
Sinceramente odeio como o mangá tenta colocar como se alphas e ômegas sofressem de maneira parecida. O momento que mais me dá raiva é quando, no final do primeiro volume, Naoto percebe que “não deveria julgar todos os alphas” porque viu como o Hazuki era uma boa pessoa. Era ELE que estava ERRADO por ter preconceito com todos os alphas. Sendo que ele foi ESTUPRADO e sofreu diversas tentativas de estupro ao longo do mangá, de gente dizendo que ele só servia para seduzir outros alphas e receber a porra deles. Ele tem TODA A RAZÃO DO MUNDO para nunca mais chegar perto de um alpha.
Um dos poucos positivos do mangá seria a relação de Naoto com sua filha Shizuku. A relação de amor entre eles é genuína. Vemos aspectos do dia a dia deles, das suas conversas e os flashbacks nos mostram como o protagonista é capaz de ir até a lua para protegê-la. Shizuku ama muito a sua mãe e, assim com muitas crianças, têm consciência do sofrimento dele e tenta cuidar dele da maneira infantil dela. Eles têm um desenvolvimento mais consistente do que o casal romântico.
O melhor momento do casal é, para a surpresa de ninguém, quando Hazuki salva o Naoto de uma tentativa de estupro. Quando sente que Naoto está no cio, ele morde o próprio braço até sangrar para proteger o outro e não perder o controle. Poderíamos ter tido algum desenvolvimento a partir daí, mas o mangá segue o roteiro comum de BL dramático sem perceber que os dois mal conversaram e terminam gostando um do outro porque sim.
Logo em seguida temos a introdução do velho clichê de uma personagem feminina que aparece de repente para atrapalhar o casal principal. Ela é ômega e diz que Hazuki é a sua alma gêmea, pois se apaixonou quando ele a protegeu do bullying ao revelarem que ela era ômega durante o ensino fundamental. O alpha rejeita a declaração dela, dizendo já ter encontrado a sua a alma gêmea.
A ironia é que ele diz que ela não pode acreditar que são almas gêmeas só porque ele a protegeu naquela época, sendo que o Naoto só começa a gostar dele de fato depois de ter sido salvo por ele. Quem precisa de coerência né?
Para completar o tamanho da merda, a garota tenta confrontar o Naoto e AMEAÇA O EMPREGO DELE com uma foto que tirou escondido dos dois. O protagonista não tem autoestima alguma e acredita que deve se afastar do outro então decide mentir e ferir os sentimentos de Hazuki.
O resto é fácil de prever. Blá blá blá “eu sinto falta longe dele” blá blá blá “ele fica mais feliz sem mim” blá blá blá “ele é gentil comigo e gosta de mim sendo ômega” blá blá blá…
No fim, depois de salvar Naoto de MAIS UMA tentativa de estupro, o casal se declara. Eles fazem sexo, o Naoto engravida de novo, e eles viram uma família feliz. Um final feliz apesar de todo o papo dele sofrer por ser ômega ser jogado para debaixo do tapete para criar o final de família perfeita e fofa.
Eu ficaria satisfeita em NUNCA MAIS tocar nesse mangá na vida, mas como fiz uma enquete no Twitter para saber qual mangá eu iria “problematizar” e esse venceu… fui atrás do segundo volume.
A continuação do mangá claramente só saiu por causa do sucesso da história e não por ter sido algo planejado de antemão. O início é pura fofura e agora temos um sentimento de que eles parecem ser um casal porque passou-se algum tempo desde o final do primeiro volume e o desenvolvimento deles aconteceu sem que a gente visse pelo visto (risos).
No entanto não demora muito para todo o papo de “tudo que vai acontecer de ruim na minha vida é porque sou ômega” voltar, porque pelo visto a autora não sabe desenvolver drama de outra forma. Porém, na primeira vez que isso acontece entre o casal o resultado foi positivo. Ao encontrarem um problema no relacionamento, os dois conversam e resolvem o conflito que os preocupava. Foi a primeira vez no mangá inteiro que era possível sentir uma conexão real deles como um casal.
Porém tudo que é bom dura pouco e na segunda metade desse volume somos apresentados a quem? Isso mesmo, o estuprador de Naoto lá do ensino médio. Que deve ser o pai da primeira filha dele, se julgarmos pela cor do cabelo. Não quero gastar mais tempo falando sobre esse arco porque ele é bem previsível e sem graça como um todo e o interessante a se comentar está no final dele.
Quando Naoto decide confrontar o seu estuprador, ele joga os papéis pelo ar e grita sobre como ele é mais do que um ômega e o errado era ele por julgar as pessoa somente pelo gênero delas. Seria uma cena emocionante, se o mangá não passasse 90% do tempo martelando na sua cabeça de que o protagonista sofre por ser ômega. Só que isso não é pior de tudo.
Após essa cena, o estuprador é desmascarado por Hazuki perante seu pai. Ele é ameaçado de ser levado à justiça pelo Hazuki caso chegue perto de Naoto novamente e ainda dá um bom soco na fuça do cara. É uma cena que dá gosto de ler para o leitor, mas esse é o problema.
Mesmo no momento mais importante da história do Naoto, ele é ainda é “salvo” por Hazuki. Porque é o Alpha quem vence o estuprador e quem realmente mete medo no vilão.
Todo o sofrimento e o preconceito que Naoto sofre só existe para criar drama. A vida dele é horrível para que Hazuki venha e torne tudo melhor. Naoto “se aceita” como ômega não porque ele percebe que não deve se sentir preso ao seu próprio destino, mas porque agora tem uma família que o aceita e o protege. Ele é protegido, ele é amado, ele não é o agente principal da sua própria vida.
Mas nós temos um final feliz, então quem se importa, né?
Todo o “comentário” sobre a opressão dos ômegas é só da boca pra fora, uma desculpa para arrancar lágrimas do leitor. A história não se aprofunda nesses aspectos e sinceramente não sei se seria melhor se tentasse. Você não pode dizer uma coisa, quando sua história e seu protagonista agem de outro jeito.
Kiraide Isasete não vê o seu próprio protagonista como mais do que um ômega.
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9 Comentários
Oiii eu queria saber a onde ler ele, não encontrei em lugar nenhum.
Me indica mais omegaverse. De preferência com pouco drama(peço asssim, já que é praticamente impossível encontrar omegaverse sem drama ou que tenha comédia). Grato
Olá,
Eu gostei bastante da resenha!
O drama em excesso não é algo que me incomoda, curto enredos tipo novelão mexicano. Porém, quando eu li esse manga não tinha percebido o quão repetitivo ele era e incoerente em algumas partes, eu foquei muito na relação entre pai e filha 😷
Eu gosto muito de enredos que envolvam o dia-a-dia familiar, mas a suma maioria de BLs que eu cruzei com esse enredo são aqueles que com pais solteiros ou omegaverse.
Eu comecei a ler BL mais assiduamente faz pouco tempo, e eu tenho uma dúvida, a adoção é uma questão meio tabu no Japão, dado que a concepção de família é muito atrelada aos laços sanguíneos (https://coisasdojapao.com/2018/01/jido-yogo-shisetsu-a-triste-realidade-da-adocao-no-japao/).
Essa questão cultural não seria também uma razão que influencia a existência de mpgre e o omegaverse?
Parabéns pelo trabalho! 🙂
Acho que não, já que o omegaverse foi criado no ocidente e as japonesas só pegaram o mesmo universo. A questão do MPREG já era comum no meio ocidental.
Ahhhh, obrigada pelo esclarecimento! ^^
Eu até leio Omegaverse quando o resto da premissa da história parece ser interessante, ou quando é alfa/alfa ou ômega/ômega, precisa mudar algo da estrutura padrão, porque não consigo gostar do lance dos instintos, cios e mpreg (que seria ok se fosse um personagem trans ou adoção, não precisaria de omegaverse), e de como quase sempre cai num clichê de relacionamento abusivo que se criou e se tornou popular no meio desse universo, o que me faz ter certo preconceito com o cenário da história, mas essa intro me fez questionar um pouco minha posição sobre isso, talvez eu só precise procurar mais por um título que eu considere ok.
Não li o mangá dessa review, mas pelo artigo me parece que Kiraide Isasete usa o protagonista como mera ferramenta de enredo, porque os clichês do padrão são pressupostos, o leitor já tem conhecimento das divisões e hierarquias mas a autora usa ele pra mostrar em vez de explicar com um monte de caixa de texto (o que muita gente fala que é melhor pra desenvolver uma história), ela usa o protagonista pra mostrar tudo que já tá estabelecido no universo, mas não vai além disso, porque se ele é usado o tempo todo pra demonstrar todas as desvantagens em ser um alfa e segue tendo um final onde ele só é feliz porque deixa de viver a própria vida e a põe nas mãos de um alfa, a gente tem status quo da primeira a última página (mas posso considerar que uma história foi contada se não teve quebra do status quo?). Me dá a impressão que ela só quis ilustrar clichês negativos do gênero.
Nossa, que redação ruim que ficou em algumas frases
“usa o protagonista pra mostrar tudo que já tá estabelecido no universo” se refere a disparidade e preconceito entre as divisões, só depois de publicar percebi que podia ser mal interpretado
Ih gente, mudei completamente de opinião, se desse pra apagar esse comentário eu apagava, ignora tudo aí, tem muita história legal
Perfeito. O comentário sobre como omegaverse querer simular uma sociedade de castas que hoje em dia não é algo mais possível de se encontrar para criar drama é bem real. E não sei pra que se existe a possibilidade de fazer BL’s , histórias em geral, em outras épocas que traria uma história mais interessante que todo omegaverse traz em BL.
Se for pra falar sobre dificuldade de criar filhos, não precisa ser omegaverse, pode ser adoção, pode ser um homem trans, pode ser o clichê de “ah é um parente de um dos membros do casal mas criamos como filho.”
Mas omegaverse parece ser uma ferramenta fácil para criar drama. Um saco isso.