Entre-Laços (no original, 彼らが本気で編むときは, Karera ga Honki de Amu Toki wa ) filme japonês da diretora Naoko Ogigami finalmente chega ao Brasil após mais um ano de sua primeira exibição. Vem com estreia marcada agora para 17 de maio, Dia Internacional Contra a Homofobia. Vem com um monte de troféus na bagagem, a maioria de festivais e premiações de cinema com temática LGBTIAQ+ (como o Teddy, do Festival de Berlim, os prêmios de crítica e público do Festival LesGaiCineMad de Madrid e o prêmio popular de Melhor Filme Estrangeiro no festival MixBrasil) e um tanto de mensagens e debates interessantes: sobre pressões da sociedade em quem não segue a norma, sobre a vida das famílias não-tradicionais e sobre a aceitação de indivíduos não-binários, dando sobretudo voz para uma das categorias mais estigmatizadas da sociedade, os transexuais. Faz isso sem apelar para a zombaria ou o choque, indo muito no sentido inverso.
Muito mesmo. Se você for ver, prepare-se: é um dos filmes de temática queer mais importantes da temporada 2017/2018. E ao mesmo tempo, um dos filmes mais domésticos, fofinhos e mimosos a passar nos cinemas nesse mesmo tempo.
Isso não é um demérito. Antes, a mensagem positiva que mostra sobre transexualidade e auto-afirmação é quase impossível de resistir. E deixa a sensação de “enfim temos o assunto tratado como se deve”. Mas, e por que?
Transexuais e travestis em destaque no cinema: mas já não teve antes?
Teve, mas não se costuma ver desse jeito, e nisso incluam-se filmes com abordagem positiva (ou alguma positividade) ao retratar. Seja dizendo que trans são pessoas legais e divertidas (como “Priscilla” e “Para Wong Foo: Obrigada por Tudo! Julie Newmar” ) ou pessoas trans como o grande amor de uma vida (“Traídos Pelo Desejo”) ou casos de “trans por necessidade” (se dá para dizer isso: mas que aqui se incluam “Albert Nobbs” e “Uma Babá Quase Perfeita”, e num inusitado sentido inverso “Transamerica”), trans notáveis por serem trans (“A Garota Dinamarquesa” e, de certo modo “Orlando”), trans sobreviventes versus o mundo (“Hedwig” e “Tudo Sobre Minha Mãe”) ou até aqueles em que famílias com pessoas trans mostravam que eram famílias sim, apesar de tudo (“A Gaiola das Loucas”) a maioria dos filmes ainda esbarra na coisa da não-normalidade. Ou o personagem trans é exagerado, caricato, ou é membro de subculturas e submundos, o centro de algo chocante, ou guarda alguma revelação que abala profundamente as estruturas ao redor.
O mérito de Entre-Laços é mostrar uma pessoa trans simplesmente existindo, sem máscaras. É apenas uma pessoa normal que é trans e está tentando levar sua vida com o maior grau de normalidade que consegue. Nisso, faz seu contato com um mundo cheio de estranheza, onde ser trans é considerado de tudo, menos normal. Há uma boa historia a contar sobre isso.
Era uma vez, de manhã…
O filme começa com Tomo, uma garotinha de 11 anos, se vendo mais uma vez sozinha em casa: sua mãe, uma mulher negligente por vezes sai para a farra de noite e simplesmente passa dias sumida. Já habituada com as ausências da mãe (e num estoicismo quase doloroso para quem vê), Tomo vai buscar ajuda com a única pessoa que lhe dá abrigo nessas horas: seu tio, Makio, funcionário de uma livraria. Makio oferece um espaço em sua casa para Tomo enquanto a mãe da menina não volta, mas avisa que sua vida está mudada: ele agora está bem dizer casado com uma pessoa a qual ele descreve como “diferente”.
A pessoa em si é Rinko, uma cuidadora de idosos que trabalha em um asilo. Ela é delicada, meiga, atenciosa, excelente anfitriã, educada, discreta, elegante, bem-arrumada, devotada à família, ótima cozinheira e uma expert em prendas domésticas, muito afetuosa—sobretudo dona de um carinho acolhedor que Tomo nunca experimentou na vida. Seria um exemplo do ideal japonês de “Yamato Nadeshiko”, descrito como a mulher perfeita não fosse por um detalhe: Rinko nasceu homem. E mesmo já tendo feito a transição cirúrgica, ainda carrega em si muito das limitações físicas, aparência e lembranças de uma vida forçadamente masculina da qual gostaria de se livrar.
Tomo passa a conviver com essa tia bastante incomum e lida com os próprios receios e até com os próprios preconceitos diante de uma situação tão nova. A aceitação não é fácil. Aos poucos, e conforme acabam enfrentando os pequenos e grandes obstáculos do dia-a-dia juntas, Tomo e Rinko passam a fazer parte uma da vida da outra, e com isso vão descobrindo perspectivas de um mundo que nenhuma das duas realmente via antes. Sobre ambas e sobre as pessoas ao redor.
Um universo de temas delicados. Delicadamente.
Uma das maiores virtudes de Entre-Laços é a capacidade de lidar com uma quantidade grande de assuntos considerados tabu em meras duas horas e sete minutos, e fazer tudo isso com uma naturalidade espantosa, até com meiguice. Vários assuntos. Não é só um tema de um personagem de sexualidade não-ortodoxa dentro de seu limite de relacionamentos diretos (como os bons “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” e “Com Amor, Simon”, com resenhas aqui mesmo no Blyme), mas uma gama de feridas sociais múltiplas, maiores ou menores que são expostas e devidamente cutucadas ali. Com muito jeito, mas são.
Além da transexualidade, assuntos como identidade e disforia de gênero, negação de direitos civis, regras de exclusão e aceitação social, homofobia, negligência e desagregação familiar, alcoolismo, homossexualidade na infância, bullying, agressão parental psicológica e, sim, suicídio são lidados sem disfarces, mas de um modo digerível. Não se evita os temas, apenas vão sendo encaixados, tratados como partes de uma historia que nem por isso é pesada, mas não existiria sem eles. Os dias de Rinko e Tomo passam obrigatoriamente por esses ossos duros de roer, que moldam os personagens e são assimilados como partes da vida. E fica bem claro que o que se faz desses ossos—jogar fora, fazer sopa, continuar roendo ou morrer engasgado—é algo que cada um tem que decidir, já que não há escapatória.
Nisso, o personagem mais emblemático talvez seja Kai, o melhor amigo de Tomo e responsável por alguns dos momentos mais pungentes de toda a narrativa. Como Tomo, Kai é uma criança que está começando a descobrir a vida, que desde cedo já entende bem para que lado seu coração bate, mas que também se vê às voltas com um mundo incrivelmente hostil a começar por sua própria mãe, uma mulher conservadora, religiosa, austera e exigente que se esforça para fazer dele um virtuose do violino. Aos poucos, conforme sua segurança emocional vai se vendo sabotada em favor de que “seja sempre uma pessoa normal”, Kai mostra o quanto o custo disso é alto demais, mesmo que seu ambiente insista em cobrar sem tréguas. São literalmente as “boas-vindas” ao mundo dos adultos, com um belo de um tapa na cara.
E o contraponto com Rinko, por sua vez já inserida nesse universo adulto, que ao longo de uma vida bem difícil (muita coisa mostrada nas entrelinhas de flashbacks, como a ausência do pai e as agressões e exigências acima de limites humanos na escola) desenvolveu técnicas e técnicas de como não explodir vivendo numa sociedade que no geral a trata mal, que sempre tem uma palavra áspera ou preconceito para agredi-la. Rinko se dedica ao tricô para descarregar nas peças que produz (algo bem incomum, mas que vamos deixar para o espectador descobrir por si só) toda a amargura que poderia carregar. Um jeito de quebrar o fluxo da energia ruim e transformá-lo em algo que seja positivo, se focar para tratar com amor renovado um mundo que lhe deu pedradas. O exercício de meditar com um rosário budista de 108 “contas” de lã bem incomuns, até se livrar simbolicamente de todo o mal do corpo e da alma (esperem alusões a isso na história, aliás).
Outra parte que é bom lembrar é o quanto o filme chega a ser explicativo, quase didático para quem quer entender diferenças entre identidade de gênero, corpo físico e sexualidade. Rinko é uma mulher que por acaso é trans, não um homem gay, do mesmo modo que Makio também não é um homem gay, antes é um homem hetero que namora uma mulher que por acaso é trans, mas isso deveria ser só um detalhe. O problema está na compreensão disso, não no que é: mesmo que a própria irmã não entenda no caso de Makio, ou que o mundo das pessoas adultas produtivas fique eternamente perplexo com Rinko (ela ironicamente é aceita pelas crianças e pelos idosos demenciados que cuida no asilo) é impossível lê-los de outra forma. Outros personagens—alguns fora do normativo, outros não—ajudam conforme a historia avança a marcar bem esses limites, com suas interações e reações. Como tudo, esse assunto é costurado na mesma tônica do resto: gentileza, doçura, normalidade. Mas sem fugir dele.
Polêmicas: sim, temos!
E com tudo isso a seu favor, a verdade é que Entre-Laços não passou incólume de algumas reclamações ácidas. Como esperado, não teve uma recepção amistosa por parte de setores conservadores da mídia do ocidente e do próprio Japão, onde se olhou com velado desprezo um filme dirigido por uma mulher e com uma temática vista como social e culturalmente invasiva. Lá impera a tônica de “o que se discute em casa não se mostra na rua”, sobretudo com algo considerado tão íntimo: salvo raras exceções os filmes e animes que saiam dessa norma acabam como obras “de gueto”, limitados ao circuito de público dedicado ao BL apenas. Mas também dentro própria comunidade LGBTIAQ+ Entre-Laços gerou seu volume de polêmicas.
As maiores críticas feitas por esses setores foram a da mão excessivamente leve, bem dizer casta ao retratar questões de transexualidade e gênero e sobretudo a escolha de Toma Ikuta para o papel de Rinko: de certo modo como aconteceu em “A Garota Dinamarquesa”, de Tom Hooper, viu-se com reservas a escolha de um homem cisgênero para um papel de mulher trans. Mas em ambos os casos, essas escolhas de tom e ator não foram tanto para o lado ruim ou de se invisibilizar comunidades e indivíduos. Antes, atenderam—com competência—aos propósitos da narrativa. Ikuta, ator e cantor de sucesso no Japão, conhecido por personagens como o pescador Kouhei em “Hanamizuki” e Yuuta Takemoto em “Honey & Clover”, acabou encaixando perfeitamente no papel de uma mulher trans ainda em mudança—como a própria Rinko diz, “com tudo consertado” cirurgicamente (a saber, a genitália), mas ainda às voltas com um avatar biológico desconfortavelmente masculino, sofrendo com os olhares de estranhamento do mundo e lutando internamente para controlar a própria disforia de gênero.
O fato de Ikuta ser muito conhecido do público e considerado um homem bastante atraente (e na verdade nada andrógino) ajudou não só a trazer público para o filme, mas também a criar o misto de perplexidade e cumplicidade com as audiências necessário para se dar voz ao personagem. Cirurgias à parte, Rinko tem ainda rosto de homem, corpo de homem, e a cabeça do público lembra logo de qual homem se trata. Mas é inegavelmente uma mulher em sua identidade e modos. Na prática, o drama que boa parte das pessoas em transição vive, exposto de um modo compreensível para quem costuma não compreender: com Tomo Ikuta, nesse caso específico quebra-se essa barreira de aversão, se faz isso sem abalos e sem que se gere uma caricatura. Rinko consegue ter seu drama pessoal ouvido por esse público que costuma fugir do debate de gênero ou o ridiculariza. Foi um trabalho muito complexo de atuação e que dependia de um mínimo de acolhimento: nas mãos de qualquer outro ator ou atriz, cis ou trans, sobretudo alguém menos conhecido, o mais provável é que esse papel não tivesse o mesmo efeito.
A delicadeza quase tímida do filme também mais ajuda que atrapalha. Sim, é 2018 e temos um filme tratando a questão de gênero sem mostrar nudez, sexo ou uma única parte íntima exposta (ao menos não-artesanal, digamos). E talvez fosse isso justamente que se precisasse em 2018.
Para todos os públicos. Ou deveria.
A intenção de Entre-Laços era—e é—a de trazer o debate da identidade de gênero para dentro da sala de jantar, para o meio da reunião anual de parentes ou para a festinha da escola, com toda a bagagem conservadora que ocasiões como essas costumam ter. Ao mostrar que assuntos de gênero não passam necessariamente por sexo hiper-exposto, ou pelo que muitos ainda chamam de “anomalias sociais” como a vida em submundos diversos, pelo necessariamente chocante e ao mostrar que famílias não-tradicionais são tão (ou mais) famílias do que as outras, o filme busca levar seus ene questionamentos para dentro do ambiente asséptico, protegido e fechado onde esse grupo mais tradicionalista da sociedade se refugia: o chamado mundo do “entretenimento familiar”, onde imperam as obras ditas seguras para todos os públicos.
Ao menos era o que o que deveria ser: embora o Ministério da Justiça brasileiro tenha posto no filme uma classificação absurda de “não recomendado para menores de 16 anos”. Não faz sentido: é mais tranquilo, com bem menos material sensível do que qualquer filme da Marvel ou DC. Ao que se vê, continuam os problemas sobre obras com conteúdo relativo à sexualidade versus obras com violência: mesmo que a violência exploda quarteirões e a sexualidade não tenha nada de explícito. Isso mostra o quanto identidade de gênero e diversidade sexual ainda são considerados assuntos tabu.
O que leva a pensar: um debate sobre um assunto tabu não se faz “espancando a porta”, mas com sutileza, palatabilidade e tato. Para que o assunto possa ser tratado com pensamentos e palavras, não com escândalo e gritos. É o que Entre-Laços faz (mesmo que o Ministério da Justiça discorde), e com isso, derruba o eterno argumento de que “coisas assim não são para se conversar com a família”. Muito ao contrário, são. E para conversar com qualquer família, sobre qualquer família e vendo finalmente que não há uma pessoa ou família que seja mais válida do que a outra. Enfim, estamos em 2018: esses temas já deveriam ser vistos com mais naturalidade. Se ainda não são, é que ainda há trabalho a fazer. E para mudar as atitudes daqui para a frente, um filme como esse já é um ótimo começo.
Veja aqui o trailer legendado de Entre-Laços
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1 Comentário
sabe aonde da pra assistir esse filme? sem ser o tele cine